a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/12/2017

A grande palmada

- Esta tua mania dos voos low cost dá nisto, tu e as tuas manias!!!
Devido à neve que caiu nos últimos dois dias em vários países da Europa, muitos voos foram cancelados ou atrasados. Aquele em que eu me inscrevi para regressar a Lisboa entra no segundo grupo, foi sorte. Mas estamos agora na porta de embarque e eu enfim consegui sentar-me com o objetivo de puxar do computador e continuar o trabalho que quer ser entregue amanhã e vai mesmo ser entregue amanhã nem que a vaca tussa (por exemplo, por causa da neve). À minha frente senta-se uma rapariga que deve andar pela casa dos vinte com cara de portuguesa. A seu lado a cadeira está ocupada com uma amálgama que denota o cansaço da espera e que parece conter casacos enlaçados em outros géneros de bagagens menores, marcando o lugar de alguém que demora a chegar. Eu vou andando no meu trabalho. O lugar do nosso avião lá fora na placa ainda está vazio, de modo que a espera alonga-se mais um bocado e eu aproveito. Quando chega, não o avião mas o ocupante da cadeira da amálgama, faz-se anunciar largando uns palavrões e gestos bastante capazes de informar com clareza sobre o seu estado de espírito. A rapariga corrobora com a intenção dele de se sentar, e faz espaço na cadeira amanhando com os braços toda a trouxa. Amanhando é uma forma de dizer. Ele, porém, não é bem sentar-se, é mais atirar-se (o meu trabalho ficou esperando neste ponto que eu visse tudo até ao fim e até é possível que de boca aberta), é mais atirar-se, dizíamos, e depois escorregar pela cadeira abaixo para encostar a cabeça na espalda da própria, gesto durante o qual pragueja com a rapariga portuguesa como já se leu acima, sendo portanto ele português também e retomamos.
- Esta tua mania dos voos low cost dá nisto, tu e as tuas manias!!!
A rapariga encolhe os ombros, estala a língua e olha para o outro lado.
- Pá! ‘Tou aqui há 3 horas à espera do teu voo low cost!!! como é que queres que eu me sinta?!
Notemos aqui por favor que está ele e estamos todos. E notemos ainda que de acordo com este indivíduo o mau tempo apenas afeta os voos low cost, aos outros voos não se sabe o que faz.
Ela pega no telemóvel como que para se desligar dele concentrando-se no pequeno visor, mas este indivíduo não está feliz ainda e arranca-lho da mão com um gesto condizente com os impropérios e outras desinteligências já expostas, ri-se agora muito e ela grita dá cá isso! Os detalhes que aqui se expõem não é tanto de eu ser uma linguaruda, é mais de ainda estar de boca aberta a olhar, portanto prossigamos: ele afasta o dispositivo da sua dona esticando o braço para o lado da família seguinte que não levou um tabefe por centímetros e que parece tão admirada com este conteúdo de caráter como eu, mas eis que a nossa rapariga vai e zás!, desfere uma sonora palmada na perna do indivíduo, isto a acompanhar novo dá cá isso!, agora mais alto, a palmada levando tal força que até parece que a mim doeu. E doeu. Mas nem foi a palmada.

8 comentários:

  1. Cenas de um quotidiano português embrulhadas em papel pardo e falta de decoro.

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    1. O problema é mesmo esse, bea: ser de "quotiodiano". Fico sempre triste ao ver cenas de falta de respeito entre pessoas que escolhem estar juntas.
      Estranho, não é?

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  2. É mais que estranho, é terrível. A naturalização, a banalização de coisas assim

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    1. Terrível, sim. Foi uma cena muito triste. O indivíduo continuou dentro do avião a portar-se como um animalzinho, eu ainda levei com o casaco dele na cara duas vezes, atirava com as coisas, enfim.

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  3. Há certos contextos propícios à violência que mora em cada um de nós e...olhe que os voos low cost o são um bocadinho (que proximidade a das cadeiras)...mas é claro que há muito mais que isso...e violência só gera violência, sabemos isso há muito.
    ~CC~

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    1. Sem dúvida. Eu tive vontade de dizer à rapariga que abrisse os olhos e se pusesse a milhas deste indivíduo (claro que não o iria fazer, só tive vontade), mas quando a vi bater-lhe com tamanha força, pensei que afinal eles devem ser muito iguais. O desrespeito era mútuo.

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  4. Ah pois. A violência como forma de comunicação. Coisa tão lusa quanto as estatísticas da violência doméstica.

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  5. Às vezes é uma violência mascarada de brincadeira e a mim até essa entristece. (mas não era ali o caso)

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