a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/05/2016

Benetton

A situação resume-se em: apeteceu-me ontem escrever outra vez sobre a inutilidade dos museus de cera quando vi nas notícias que o nosso Presidente vai ter um boneco igual a ele num museu já não me lembro onde. Eu proibia que fizessem um boneco, boneca, de mim. Que susto. Se ficasse muito bem feitinha, ou seja, parecida comigo também por dentro, a parva da boneca, podia sei lá ganhar vida e andar por aí a incentivar os outros bonecos de cera colegas de sala a rebelarem-se, a quererem uma vida melhor, quebrava o silêncio das moscas do museu e conferia uma certa desmonotonia àquilo. Ao menos os museus de cera podiam servir para inventar a palavra desmonotonia que, essa sim, ser-me-ia agora útil e não estava o leitor a pensar tsc tsc essa palavra não existe.

Apeteceu-me escrever isto, mas depois pensei em outra coisa, muito mais na ordem do dia (sendo que não é sobre estudar com filhos no meu caso filhas sejam as minhas sejam as dos meus pais).

Fui à médica do trabalho na semana passada. Ao entrar no gabinete, vejo que na parede por trás da médica está pendurada num cabide uma gabardine precisamente daquele azul que me faz estremecer os olhos de lindo que é. Trata-se de um azul claro ligeiramente acinzentado, tom que praticamente não encontro em lado nenhum. Vi este azul pela primeira vez num filme, o azul vestia a atriz do nove semanas e meia mas acho que não foi no nove semanas e meia. Ela tinha uma gabardine desta cor e vestido também, era um conjunto. E eu, embora com o cabelo bem escuro e os olhos nada azuis, decidi que essa seria a minha cor de gabardine ou casaco, conjunto não era preciso, e procurei procurei procurei até que anos depois comprei um casaco de fazenda mas a cor não era aquela, não exatamente aquela, até hoje não consegui.

- Que gabardine tão linda tem aí, doutora. Adoro absolutamente esse tom de azul.

- Ah!... É tão velha! Já tem uns sete anos.

- Mas é linda e agora não tiro dali os olhos.

- Hoje apeteceu-me uma cor alegre, sabe? Não queria uma gabardine preta... nem bege... nem verde escuro... e então trouxe esta.

Este foi o ponto em que contei quatro gabardines à médica do trabalho e invoquei o meu guarda vestidos, no qual, mentalmente, só vi duas, e há anos, e ainda por cima da mesma cor, uma delas oferecida pela minha mãe que diz ser o vermelho uma cor boa para mim, por seres assim morena, Susana.

Mas eu ainda não desisti e com este post espero ter ido mais longe na manifestação do meu desejo desde que vi aquele filme com a Kim Basinger, uma espécie de premonição é o que quero que seja, ao menos muito mais útil, o post, qualquer post, na verdade, em qualquer blogue, é mais útil que um museu de cera. Digo eu.

Quando a médica me mandou sentar na marquesa para me auscultar, eu passei muito perto da gabardine para lhe ver a etiqueta da marca, a etiqueta mesmo ali viradinha para mim. Benetton.

24/05/2016

O juiz

Julga que, por emitir opinião sobre tudo e todos, é maior. Julga que, por emitir essa opinião aos gritos até que outros se encolham, é enorme. Julga que, por se recusar fazer o que não lhe agrada zombando da inutilidade que lhe inventa, é indispensável. Julga que mostrar-se em permanência  zangado com o mundo, o reveste de inegável importância. Que, sem ele, a vida para. Aliás, que é por aquilo que (des)faz e diz, perdão, grita, que o sol continua a nascer. Unta-se, cheio de si, de uma razão balofa que reivindica sua e classifica de superior. 

É patético.

Lugares

Na secção dos monos, que é a secção faz-tudo, eu uma sobra do dia a ouvir a noite já surda, onde me visto à força de silêncio, aprendi a separar-me da minha alma por razões históricas.

O raio de sol que se inscreve no espírito da tarde disfarçado nas mãos, nas minhas mãos que envelhecem ali e o meu sangue corre cada vez mais depressa, é com elas que esfrego os olhos para poder ver de novo. 

A sala dos potes sob pressão onde pessoas cospem espadas ao ar saturado de um nada velho para com elas exibirem uma divindade presumida, eu fecho os olhos e penso no canteiro de flores forçadas que não morrem ao vento da porta da entrada. 

E, nas manhãs, oiço o melro cantar vibrato composto por ele junto ao vidro mais alto que é espelhado, do outro lado julgando ver-lhe outro, também ele numa serenata das alturas, concerto que me leva pelo caminho mais devagar como se fosse para mim, antes de despir por dentro a alma, me encher do pó de uma pedra morta e entrar.

21/05/2016

Sapatos e cadeiras


Ando a treinar a prototipagem rápida de posts (para poupar tempo a todos nós). Se cada post é único, tipo artesanato, ainda que um artesanato intangível, então pode denominar-se um protótipo, sim?

E isso deu em vir cá dizer uma coisa: passei o dia todo, mas é que foi todo, a ver sapatos e cadeiras. Sapatos e cadeiras. Sapatos e cadeiras. Sapatos e cadeiras. Porque o meu trabalho puxa-me para a consulta de alguns sítios na internet aos quais não posso fugir e que são meio científicos meio malucos porque mostram-me um porradal de sapatos e cadeiras, sapatos e cadeiras (porradal é feio mas não muito).

Os sapatos são assustadores, aparecem de um lado do ecrã a piscar. E têm um desconto muito grande (pudera). Eu se os calçasse não pareceria eu mas para além disso havia de cair logo num instante deles abaixo. Ponho aqui uma amostrinha para se ver como é.



Quanto às cadeiras, que aparecem a piscar do outro lado, posso dizer que estou compradora, preciso de mudar as minhas. Mas posso dizer é aqui no blogue, se me exponho assim lá nesses sítios da internet, meio científicos meio malucos, até tenho medo que venham as cadeiras tocar-me à campainha ou então chover-me em cima do carro que hoje ficou estacionado na rua, coitadinho. E está tão sujo. Bolas.

Tjalp tjalp teren tjalp

Enquanto estendo a roupa, olho o quiosque das flores e vejo que está aberto. É normal estar aberto ao sábado mas não é normal não se ouvir o papagaio. Não oiço o papagaio, pensei. Mas disse.

- O quiosque está aberto – às vezes gosto de ouvir a minha voz, principalmente porque já não a ouvia desde ontem.

E, ao apertar a próxima mola, tenho umas molas de roupa novas muito boas que ainda não começaram a perder as características elásticas ao sol e a partirem-se-me nos dedos, e esta é dessas boas, baixo os olhos para o que estou a fazer e deixo o quiosque das flores para ali sozinho, à intempérie, para quem quiser olhar para ele que eu agora é as molas e a roupa e não é que, totalmente neste momento e completamente de repente, começa o concerto tjalp tjalp teren tjalp, ou seja desata-me o papagaio naquilo do costume?

É claro que estas coisas bonitas têm de ser contadas no blogue da pessoa que tem um blogue. Tenho uma colega que fala assim em relação a ela própria “a pessoa”, e eu sempre achei graça a isso mas nunca lhe disse não vá ela engasgar-se e começar a dizer “eu” e aí perder a graça que lhe acho. Mesmo em dias em que a pessoa devia era trabalhar que nem uma louca até cair para o lado em vez de escrever para o blogue, a pessoa tem de escrever para o blogue estas coisas bonitas.

A pessoa gosta de quem a lê, até gosta é muito de quem a lê. Isto parece que a pessoa pode dizer.

(as molas que ficaram no cesto)

19/05/2016

Um frango e meio sem nome

Hoje ao acordar lembrei-me de repente dos dois grandes robalos que passaram uma temporada no congelador do meu frigorífico absolutamente tesos e inseparáveis até que um calorzinho demorado se lhes chegou e eles lá pronto, lá se deixaram apartar e aqui já devia vir uma vírgula para a pessoa respirar mas falta dizer que aqui assumiram os robalos uma postura mais flexível. Achei a ideia tão parva que me ocorreu logo vir escrevê-la.
A verdade é que gostava de ter esses robalos ainda hoje, tesos e inseparáveis no frio glaciar do congelador, podia ter-lhes dado nomes, por exemplo Rubinhas e Baldinho, mas gostava de os ter, aos dois grandes robalos, para não precisar de ir ao supermercado outra vez, já lá fui ontem e ia mesmo chateada de ir ao supermercado ontem. Não sou capaz, suspiro, suspiro, suspiro, de me sentir feliz no supermercado, embora faça um esforço, o meu esforço é assim, penso uma coisa por exemplo esta: se um dia estiveres toda infeliz e doente numa cama de hospital, vais desejar poder ir ao supermercado, por isso dá valor. E dou, dou valor, suspiro e dou valor. Até entrei a sorrir por ali adentro, apanhei primeiro as prateleiras do pão, ai o aroma, pãozinho tão bom, lancei o sorriso para as prateleiras do pão, pronto, esforço-me.
Hoje tencionava então lá ir comprar três robalos mas não tão grandes, e já tinha começado a pensar em nomes para eles, dá-me para sentir carinho aos robalos, aos peixinhos em geral, mas o meu dia complexou-se todo na hora do entardecer, todo todo, é que o primeiro festival de verão já abriu portas e também fechou vias por onde eu tencionava passar, de modo que afinal o jantar foi um frango e meio de churrasco apanhado antes de fechar o comércio do bairro quando finalmente consegui quase chegar a casa. Mas a um frango e meio não fui capaz de dar nome. Nomes. Nome. Ou nomes?

16/05/2016

Estranheza de conteúdo

Quem anda à chuva molha-se é tão verdade como o fenómeno de nunca ter o chapéu de chuva à mão quando preciso dele. Por outras palavras, traduz-se a ideia assim: isto de muito labutar chegou-me cá uma dor ao braço direito que se inscreveu para a categoria de lancinante. Dor lancinante. Enraizou-se entre dois músculos do ombro e dias volvidos já se tinha desenrolado para baixo, atingindo três dedos que andam sonolentos desde aí. O cotovelo não foi esquecido neste apanhar de todo o membro e eu, que não estou interessada em lancinâncias, optei (lancinâncias parece que não existe). Optei por instruir o rato do computador nesta segunda feira a mudar de mão. Só que à esquerda temos pouca conivência entre um querer (rato) e o outro querer (mão), isso viu-se às primeiras. Em folha de cálculo, ao querer aglomerar algumas células duas a duas em dezenas de linhas, vai o rato lançado numa correria na qual aglomeramos em equipa até à linha quinhentos e noventa e quatro, ou seja centenas. Compreende-se o entusiasmo, afinal o rato ainda não conhecia as maravilhas da esquerda nem tampouco estava esta habituada a bulir (bulir existe), até parece que se juntou ali a fome com a vontade de comer mas ao contrário (asneira atrás de asneira). Para repor o assunto e devolver as células aglomeradas sem intenção à sua individualidade de célula só, conseguimos inserir numa delas um comentário inadvertido que lá se meteu, foi mais uma coisa do novo parzinho rato na esquerda. O comentário ficou vazio, como seria de esperar.
O resto do dia fez-se lentamente, paciência, e, perto das cinco e meia, no minuto em que o sol me vem pousar nas mãos, a direita, arroxeada de insensibilidade (recordemos os três dedos dormentes), animou-se de tal forma que, quando damos por isso, está o rato de volta a casa e o trabalho a querer de novo fluir.


(estava a pensar escrever agora assim, para justificar: “post escrito muito à esquerda, daí a estranheza de conteúdo”, mas achei que o leitor iria tentar inferir daqui uma conotação política e eu não ponho conotações políticas no blogue, de modo que fica como está e está justificado à direita)

13/05/2016

As moeditas

Passa pouco das duas horas da tarde, já toda a gente almoçou. A dona Esmeralda aparece-me no gabinete, coisa que muito raramente acontece.

- Então?... Está tudo bem consigo?
- Está sim, dona Esmeralda, apenas me dói a cabeça.
- Quer uma aspirina?
- Já tomei, obrigada. Agora mesmo.
- E café? Não tomou café?
- Não, por acaso não tomei café.
- Então venha, eu pago-lhe um café.

Pela primeira vez em mais de uma década tomei um café com a dona Esmeralda e foi ela a convidar. Enquanto tira os dois cafés da máquina, o seu é normal, menina? é sem açúcar, se faz favor, vejo-lhe no braço o grande penso branco que ostenta desde que se queimou no forno industrial, há dois dias. O penso estende-se do pulso ao cotovelo.

- Está melhor do braço, dona Esmeralda?
- Olhe – e exibe o penso – está assim como vê.
- Só vejo o penso...
- Pois, só vê o penso... mudo-o todos os dias. Estes pensos são muito bons, meto os braços na água e nada, não entra nada. A cabeça do homem é espetacular, do homem quer dizer, de quem inventou isto.
- Pois, pode ter sido uma mulher, não sabemos.
- Pode. E olhe que o penso não deixa mesmo entrar água nenhuma, está muito bem feito, é espetacular. Só que custa muito a tirar, sabe, à noite quando o tiro tem de ser à bruta, senão não sai.

Quando tirou da máquina o segundo café, veio sentar-se ao meu lado no banco corrido junto à parede, feito com metades de paletes.

- Eu gosto de me sentar um bocadinho e conversar um bocadinho - respondeu a dona Esmeralda à pergunta que não fiz.

Depois continuou.

- Quando o meu marido era vivo eu nem podia andar com moedas.... ele chegava a casa, já lá vão quase seis anos que ele morreu, menina, chegava a casa e tirava as moedas do bolso, punha-as todas alinhadas em cima da cómoda, todas alinhadas, e contava-as (a dona Esmeralda conta moedas no ar, com o dedo). Depois eu ia limpar o pó e assarrapava-lhe uma ou duas... mas daí a bocado já o ouvia..... Eh!! havia aqui mais moedas!! já tiraste moedas!! E eu dizia-lhe que não, que tinham caído quando andava a limpar o pó... mas menina eram só vinte cêntimos que eu tirava, ou assim, não era mais...

- Mas a dona Esmeralda não tinha o seu dinheiro?!
- Tinha, mas ia para o banco, era todo para o banco, não podia andar com nada. E às vezes apetecia-me ir à rua tomar um café, para isso é que era as moeditas... (suspira)

Lembro-me bem de quando o marido da dona Esmeralda adoeceu e depois, uns meses depois, morreu. Vi-a sofrer durante muito tempo. Ela amava o seu marido. Vestiu de preto o corpo e a alma durante alguns anos e só tirou o luto do corpo a mando das filhas e a custo. Olho para ela e vejo uma sombra nos seus olhos escuros. Não digo nada. Ela acaba de beber o seu café e amachuca o copo de plástico.

- Sabe – continuou, enquanto se lhe perdia o olhar para além dos vidros que nos deixam ver os carros estacionados lá fora – eu agora vivo mais, deus me perdoe. Vivo mais, menina.


Quando me sentei à secretária e pensei que queria escrever este post, notei que me tinha passado a dor de cabeça.

09/05/2016

O trânsito do mercúrio e o primito do bosinho

De manhã deixei a minha filha bem em cheio na paragem do autocarro da qual saí toda depressa porque vinha lá o pesado de passageiros amarelo e paralelipipédico com rodados, isto para não repetir autocarro. Não faltava muito para chegar ao trabalho, mas atentei nas notícias do trânsito. Em todo o território de Portugal, entre as doze horas e as vinte deste dia de maio, o trânsito de mercúrio a passar em frente do sol de quem olha daqui do planeta em que calhou nascermos todos e no qual vemos interesse em fazer guerras mas isto é um aparte que se meteu aqui não sei porquê. Recomendações para não se olhar para o astro rei, e agora foi para não repetir sol, o mercúrio transita de um lado ao outro do – na rádio ouvi – disco solar, um pouco abaixo do diâmetro e é nada mais que um pontinho negro para quem olha daqui mas não deve olhar, também não faz mal porque ninguém imagina mercúrio lá muito grande, este nosso planeta azul onde achamos boa ideia fazer guerras, já disse, é um bocadão maior portanto era assim, ó mercúrio, crescesses. Cheguei ao trabalho e estacionei de marcha atrás, estaciono de marcha atrás há tantos anos que me sinto uma perita na matéria, e foi neste ponto que a notícia do trânsito acima referida evoluiu para as colisões do CERN, já faltou mais para eu ficar agarrada ao rádio o dia todo, querem ver? Aqui fica um ponto de interrogação, para dar um descansozinho tanto ao leitor como às vírgulas, respiramos portanto em conjunto neste mesmo planeta azul em que de vez em quando nos matamos uns aos outros, ah já disse, não vou repetir, e estamos prontos para as surpresas do mundo pequenino, aliás todo minúsculo, que apareceram lá no CERN, surpresa!, parece que o bosão de Higgs tem um primito que ocorre ali imensas vezes, ninguém esperava aquilo, é muita atividade numa risca qualquer que não percebi qual é. Ou seja, afinal andamos ainda mais cheios de partículas fundamentais e não sabíamos. E isto acho giro porque são mais pontos em comum entre nós, os seres do terceiro planeta que... certo, já disse.
Antes de terminar o post, ponho-me a tentar imaginar o bosão de Higgs, que deita tão pouco corpinho, mas deita, que ele deixou-se apanhar. Acho que deve ser de cor preta o bosão (mas devia era chamar-se bosinho, como é evidente), redondinho, espécie bola de bilhar esquiva. Ou seja, vamos lá ver, no fundo uma imitaçãozinha de mercúrio à escala de quem olha daqui donde estamos todos juntos e não deve olhar. Mas quer dizer, isto sou eu, claro.

(lembrei-me agora de uma pergunta que a minha irmã que depois foi estudar economia, me fez há décadas: mas diz-me lá uma coisa, afinal de que cor são os eletrões?)

07/05/2016

Metamorfose

Tenho envelhecido em frente ao computador, processo apenas interrompido para verificar no espelho que é verdade isto de o tempo passar depressa. Ao menos há um pedaço de plástico por testemunha, um quer dizer, muitos, e vidro e coisinhas outras de que é feito o computador, tic tic tic, não totalmente silenciosas estas testemunhas. De resto passa nada, tirando eu continuar a não gostar lá muito de vírgulas. Mas venho cá dizer isto.

Há pessoas lindas aqui pela blogosfera. Generosas. Com bom coração. Eu avisei que ia parar com o blogue por um tempo, e parei, e é mesmo por um tempo se eu sobreviver à operação de transformação não num inseto castanho e grande, coitadinho, nunca me esqueço da cena da maçã a incrustar-se-lhe na carapaça, fez-me tanta pena essa maldade, somos tão pequeninos quando temos medo, estúpido do pai que lha atirou, e depois aquilo infetou, mas adiante, que nem toda a gente leu a metamorfose, e estas pessoas lindas vêm dizer-me, lá arranjam uma maneira e vêm dizer-me, que gostam de me ler e que me querem ler e isso, caramba, isso é um presente que levarei para dentro do futuro guardado no meu coração que fica todo contente.

E agradecer como?

02/05/2016

Sim, sucumbi (por ser dia da mãe)

Pela janela da cozinha vejo o arranjo de mesa corrida coberta de vasos em vez de ouvir o papagaio, cenário montado junto ao quiosque das flores que hoje está maior, mais bojudo, largo ou comprido e, se olharmos bem, vemos pessoas a transportar flores em vaso ou em ramo e em todas as direções a partir daquele centro nevrálgico às cores.

(no supermercado estive muito mal disposta do tipo rabugenta e nesse estado perguntei na caixa com modos enviesados como é que posso ver-me livre das mensagens dali provenientes que recebo no telefone sem querer)

A três metros da janela por onde olhei as flores, ponho-me dentro a desfiar a posta de bacalhau frio acabada de sair do frigorífico, por isso é que está frio o bacalhau e fria a posta, e um bocado dura, se for a posta o sujeito, e a colar-se-me aos dedos, é de ontem, e agora estou a achar que devia haver uma palavra assim: dontem, até soa a português antigo, que lindo, mas não há palavra assim e continuo com o bacalhau, olha estou a receber uma mensagem - do bacalhau? - sim do bacalhau, esta quero saber qual é, diz lá bacalhau, digo, estou a estranhar-te, susana, cortaste o cabelo, cortei, e vou ser só teu? vais, bacalhau, só meu, não quero ser só teu, mas qual é a tua ó bacalhau, se eu te gosto tanto mesmo frio, mesmo duro, mesmo a colar aos dedos, ou fria, e dura, mas isso era a posta e já não é, agora é lascas.

(respondeu-me a senhora da caixa que eu podia perguntar a outra senhora de outra caixa sobre como libertar-me de receber mensagens do supermercado, é que eu não sei, minha senhora, mas porquê? não gosta de receber as nossas mensagens?!)

Almocei sozinha a contragosto do bacalhau e já depois da cozinha arrumada não tomei um café e tomei a janela, eu o que gosto da janela, a mesa corrida das flores tem uma parte já sem, está branca essa parte, são muitas as pessoas com mãe a receber flores.

(não, não gosto, a senhora da caixa estende-me o talão no final da operação de pagamento e depois diz querida não sei quê tente lá na outra caixa a minha colega sabe isso das mensagens, chamou-me querida mas continuei rabugenta e não fui à colega das mensagens)

A meio da tarde devolvo-me ao assomo da janela, hoje passo o dia na cozinha se não contarmos a ida ao supermercado, os compradores de flores já limparam mais de meia mesa corrida, muito mais, está lá quase nada, isto é que foi uma dinâmica valente e agora imagino mães, muitas mães de braços estendidos a receber flores com beijos e com abraços, flores só com beijos, flores só com abraços, mas cheiram-nas, todas as mães vão cheirar e dirão que bem que cheiram as flores meu amor, os filhos são sempre os nossos amores e eu vou e telefono às minhas, uma não atende, a outra também não.

A causa da rabugice foi encontrada: era de não escrever; e as minhas filhas, quando chegaram do fim de semana com o pai, disseram, as duas:

- Mãe, estás tão linda.

As duas.