a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/01/2016

Filha

De manhã cedo ajudei-te com a impressora e o trabalho para entregares ao professor. Precisamos do tinteiro de cor, ficaram as figuras desmaiadas, ainda assim, não faz mal, disseste, dá para ver bem. Deixei-te, pouco depois, no portão da escola e segui para o trabalho. Levava comigo a memória amarga das tuas lágrimas de ontem, as que foste esconder no duche depois do treino. Levava também a angústia de não saber se serei capaz.

"Mãe, podes almoçar comigo?" dizia a mensagem que chegou a meio da manhã.

Apanhei-te ao portão à hora combinada, desta vez não me fizeste esperar. Almoçámos ao sol que Lisboa nos deitou e eu encontrei no fundo manso dos teus olhos grandes, coabitando com a esperança original intacta, o medo desajustado, este medo novo, um medo que não é o do escuro nem o do lobo mau, esses morriam fáceis nas palavras que me ouvias, eu era então capaz. É um medo feito agora mensagem que não sabes enviar por não a poderes ainda formular. Capto-a, porém, descodificada. Guardo-a no coração embrulhada em amor pronto a usar, mesmo à mão para te servir de amparo, filha, se for capaz.

Continuas a falar mostrando-me, sem saberes, a luta que se trava trôpega dentro do teu cândido existir e o meu embrulho começa a abrir-se. Sai-me agora em silêncio pelos poros num calor que te quer enlaçar a alma para sempre, revestir-te de uma camada de força inquebrável, maior que o sol e o rio e leve como o pôr de um sol de verão quente, um seguro de vida protegida por este meu doer que me teria começado também a jorrar pelos olhos em estado líquido, não fosse um pardal pousar na árvore nua junto de nós.

- Está ali um pardal, mãe.

Ficámos ambas a olhá-lo saltitar entre os galhos enquanto ele foi nosso. Depois, quando voou para fora do teu alcance, voltaste esses olhos grandes de novo para mim e sorriste.

- Já estou melhor.

Eu também, filha. Tu ainda não sabes que serás capaz. Mas eu sei.

26/01/2016

Post mau, mas mau

Está uma pera rocha (com autocolante de origem) dentro da gaveta de baixo lá da minha secretária. Também está uma embalagem de chá e um pacote de bolachas, migalhas, duas chaves unidas por um porta chaves com chapinha plástica em azul, um frasco vazio (gosto muito de frascos vazios) e um postal que recebi num natal de há muito tempo, antes de deixar de receber postais de natal em postal de natal (isto percebe-se) mas de quem é o postal já não me lembro, amanhã verifico logo assim que me lembrar.

O que não se percebe é o interesse deste post. Ando às voltas.

Na segunda feira cheguei ao trabalho atrasada uns três minutos para a reunião, por causa da mania de ir ver o rio mais de perto e tentar definir-lhe a cor todos os dias. Desta vez, com aquela chuva toda, estava cinzento-apodrecido-no-verde. Quando entrei na minha sala espavorida e ouvi o zzzzzz do aquecedor que uso em vez do ar condicionado que a sala não tem (o ar condicionado nunca gosta de mim, é recíproco), senti a lâmina da culpa a ferir-me com uma ideiazinha assim: para além de chegares a estas lindas horas, ainda deixaste o aquecedor ligado todo o fim de semana, sua mula (quando eu estudava coisas difíceis para a faculdade em casa do meu pai e de repente descobria um erro, dizia isto, ah, estúpida!, ao que o meu querido pai, se me ouvia, respondia como quem fala sozinho, cá em casa não se contraria ninguém, um amor), lancei-me então ao interruptor e desliguei-o logo para poupar energia ali mesmo, depois abri o computador e fiz as coisas do costume muito depressa, corri escadas acima para a reunião e pus-me a pedir desculpa às pessoas, apertei-lhes as mãos, mas afinal tudo ainda no café, easy on, as eleições e o benfica também. Mais tarde, já de volta à minha sala, aparece a dona Rita, que é a brasileira que faz as limpezas lá do escritório e chega antes de mim. Mete a cabeça dentro da sala, um grande sorriso, está sempre bem disposta a dona Rita: intão, goztô? 'tava quentjinho dji manhã, tava? eu vim limpá e liguei o quentjinho p'ra siôra!

Continuo às voltas. Apetece-me amuar outra vez. Fazer uma birra. Quero o Xilre de volta. (eu e mais milhões, ou não?)

(e impostos para isto, ó Palmier? taxas, multas?... nada?... temos que aguentar?)

24/01/2016

Pequeno post em noite de lua cheia

O rapaz veste-se bem. Digo rapaz porque sei que ele tem menos dez anos que eu. Num dos dias da semana passada, quando estávamos na reunião do costume, reparei que usava uns botões de punho especialmente bonitos. Vi primeiro só um, tinha a forma de uma motorizada vespa, era de um azulão proporções perfeitas. Quando dei por mim já lhe estava a perguntar se o outro botão de punho também representava uma motorizada igual (imaginei que podia ser uma cabine telefónica vermelha ou um semáforo no verde). Sim, o outro é igual, mostrou-o. O meu colega que também lá estava, homem mais dado aos resultados do Benfica e ao desporto em geral, que sabe imitar muito bem o Tino de Rans nas suas declarações sobre a visita que fez a Bruxelas, nunca nos contemplaria com botões de punho em dia de trabalho, muito menos daqueles, franziu a testa como quem pensa mas que mariquice é essa. São muito giros, disse eu.

- Os meus filhos é que gostaram deles, pediram-me para comprar estes - os filhos dele, sabemos, são dois rapazes: um com três anos, o outro com quatro.

Se, em vez destes botões de punho, o rapaz ostentasse um par de quadrados bojudos em aço escovado a lembrar chicletes, os quais não me teriam arrancado pergunta alguma nem ao meu colega o consequente franzir de testa, eu não passaria a respeitá-lo ainda mais nem estaria agora a produzir este pequeno post em noite de lua cheia.

22/01/2016

Quedas de dois mil e dezasseis, segunda e última parte por enquanto

No sábado passado já tinha dito que jantei em casa da minha irmã e que ela tem três filhos digo agora. Para além do marido e de um cão. O filho mais novo vai nos três anos e tem larga experiência de jogo de bola, chuta tudo o que apanha, mete sempre golos e até tentou agarrar a lua cheia no verão para meter mais um. No entanto, de comer não gosta. À hora do jantar, esconde-se debaixo de uma cadeira ou aninha-se entre o aparador e a parede, que o seu tamanho está de acordo com o fraco garfo que é. Dado talvez a pesadelos próprios para a idade, o meu sobrinho por vezes sonha que bebeu vários biberons de leite. Ao acordar, pela manhã, quando lhe põem à frente o biberon com leite morno - bebe, Rodrigo - protesta e diz eu já bebi cinco leites! Vá lá, bebe então só um golinho desse leite, ele cede e vai um golinho, já 'tá. E agora só mais um, bebe, Rodrigo. Ele bebe mais um e depois mais outro, sempre a pedido, até que, distraído, bebe o biberon inteiro e no fim, indignado: Olha p'a isto! bebi tudo! agora vai doer a barriga!

Mas a barriga que no sábado doeu não foi esta.

Quando saímos, já tarde, de casa da minha irmã, estava escuro no caminho que dá acesso ao portão e eu ia com frio por causa daquele vento agreste de janeiro à noite. Caminhava virada para trás a dizer adeus adeus, obrigada pelo jantar, a acenar aos meus sobrinhos, de maneira que não vi um concentrado de dor de barriga de cão que tinha sido depositado ali no meio do caminho às escuras, ela ainda disse cuidado!, a minha irmã, mas o meu pé assentou-lhe bem em cima deslizando logo de seguida obediente às leis do costume, era uma dor de barriga recente, o movimento levou-me uma parte importante do equilíbrio, o outro pé veio acudir ao susto, tentar devolver verticalidade ao corpo, mas não, espera, vai lá mais três passos em dança acrobática improvisada, a ver se a coisa se compõe, não se compôs. O chão acabou por me abraçar firme, com a força de um chão duro me acolheu, especialmente num joelho. Reergui-me de um salto e num instante devolvi-me as pernas ao sítio, sacudi o casaco e sosseguei todos que tinham vindo ver de perto, não foi nada.

Ficou só a faltar dar um pontinho nos collants que o chão rasgou; dar um pontinho dizia a minha avó que, se fosse viva e me lesse o blogue, havia de acrescentar assim: abre lá isso dos comentários, filha, anda.


(as palavras que recebi desde há dois posts a propósito de ter fechado os comentários, fizeram-me mudar de ideias; parece que afinal este blogue não é só meu, tornou-se nosso)

21/01/2016

Post nada sexy porém com teaser

Peguei no computador portátil para o fechar e meter na mala de transporte, no momento em que a ponta do cabo se largou à doida para o lado esquerdo num jeito muito rápido e derrubou o camelo amarelo de plástico que está em cima da minha mesa de trabalho a declarar amor ao Qatar desde dois mil e treze. Mas derrubou-o cá de uma maneira que o meu pequeno camelo caiu ao chão com estrondo, aquilo é um plástico amarelo maciço, ou então é uma espécie de massa, agora estou na dúvida, o camelo coitadinho partiu as duas pernas de trás mas como eu ia com pressa para a reunião, deixei-o deitado em cima da mesa a descansar perto das suas pernas, I love Qatar há tanto tempo cansa com certeza, a ver se amanhã peço ao Luís para colar as pernas do camelo, aposto que nem se fica a notar.

Isto foi hoje mas não foi tudo. Depois da tal reunião e de encontrar o vizinho do quarto andar que me fez chegar tarde à aula de ginástica com a conversa dele muito cheia de nove horas, entrei largada no ginásio, pendurei o casaco e a mochila no cabide e fui a correr para o lugar apanhar o exercício de aquecimento onde ele já ia.

- Tenho duas aulas preparadas, preferem bolas ou salsa? - a professora lança a questão no final do aquecimento e eu, que detesto as bolas porque caio delas abaixo e magoo-me nos cotovelos e em outros ossos, as bolas são de borracha, moles mas não muito, e têm de perímetro mais de um metro, não ficam quietas nem sob o meu peso. Fui a primeira a responder, salsa! As outras colegas secundaram-me e os dois homens da classe, cavalheiros, disseram baixinho que preferiam as bolas, mas como estavam em minoria, encolheram os ombros e avançámos alegremente para a salsa. O que eu não contava nos meus cálculos contra as bolas e o esticanço que a professora nos obriga a fazer deitadas em arcos dolorosos para as costas, nada sexy e muito feio aquilo, era que o chão do ginásio estava muito escorregadio. Nas voltas da salsa comecei a escorregar, mas recuperei o primeiro pé. O segundo também e o terceiro. Logo após ter evitado a quinta ou sexta queda, eu já numa salsa contida, muito menos ampla e mais lenta, a professora intervala para irmos beber água. Junto ao cabide onde estão as mochilas com as garrafas de água, perguntei aos outros se estavam a escorregar, estavam. Mas naquele seu sítio é pior, vá para ali, disseram-me, no outro lado escorrega menos. Arrumei a garrafa dentro da mochila, fui. No novo canto larguei-me outra vez, entreguei-me à salsa, confiante no chão dei expressão ao meu corporal, mais expressão, senti o movimento voltar a tomar conta de mim e de repente, num vira dali, sinto o estúpido do chão a espalmar-me a anca esquerda a doer e na cara também e oiço um ahhhhhh... magoou-se?

Se entretanto não me partir toda, amanhã ou depois sou capaz de contar a outra queda que dei, a de sábado passado. Aquilo do camelo foi apenas um aperitivo para preparar o leitor mais desavisado. E a este final chama-se teaser, gosto muito.

20/01/2016

Miss Smile

No sábado e no domingo aproveitei o sol para lavar roupa e pô-la a secar. No domingo aproveitei a tarifa de vazio para passar a ferro dois montes de roupa porque se fosse só um entornava de tão alto. Também fiz um creme de espinafres com os legumes que comprei no supermercado, desta vez as miúdas gostaram da sopa.

Na segunda feira, fui comprar toner para a impressora à hora de almoço e tomei algumas notas para escrever um post que andava a querer sair desde o fim de semana. No fim do dia, escrevi à minha irmã para lhe agradecer o magnífico jantar que nos ofereceu no sábado. Tratei, ainda na segunda feira, de mudar de seguro de saúde e de terminar a operação da roupa que não ficou concluída no domingo. Antes de dormir ainda li meio capítulo do maravilhoso "Crime e Castigo".

Na terça feira fiz um jantar rápido, arrumei a cozinha cedo, vi uma parte do debate dos candidatos à presidência da república pelo canto do olho e preparei-me para o momento que me dá sempre tanto prazer: sentar-me a escrever o post que tinha entrado em trabalho de parto.

Mas depois vi uma coisa que me deixou muito mais triste do que eu podia imaginar. Que me atrofiou o post por nascer e me pôs um nó na garganta. E então percebi que foi estúpido deixar que as pessoas me cativassem tanto como algumas têm cativado. Foi estúpido não ter mantido presente que isto são mesmo só blogues e nada mais que blogues e que blogues hoje abrem, amanhã fecham. Foi estúpido.

Adeus, Miss Smile, e muito obrigada por todos os sorrisos.

(a partir de agora este blogue deixa de ter comentários abertos)

15/01/2016

A doce vertigem de ser

Quando me ensinaram a dinâmica dos fluidos gostei muito dela apesar de o professor estar constantemente a dizer digamos. Os fluidos são muito úteis como meios de transporte de calor. Ou de força, uma espécie de energia: muitas coisas se podem fazer com os fluidos, especialmente se não estiverem em repouso (dinâmica, daí o nome). Na altura, com certeza eu teria uns vinte anos de idade, não me teria espantado de forma nenhuma se naquelas leis próprias dos fluidos a música tivesse sido invocada, explicada. A música é um fluido. E, se o professor o tivesse feito numa das aulas sobre os fluidos em andamento, digamos, a música é um fluido, eu ter-me-ia endireitado na cadeira, teria esticado o pescoço e aberto mais os olhos com muita atenção. E talvez essa aula tivesse mudado a minha vida, tanto que, mais tarde, ao chegar a casa, teria procurado sem parar a minha solução para esta nova equação - qual música tem a melhor viscosidade para fluir do meu ouvido para o coração ou então para a alma (ainda não saberia). Em vez disso, fui fazer outra coisa qualquer nessa tarde depois da aula que não mudou a minha vida.
Só hoje - já o tempo me dobrou a idade uma vez vírgula tal - descobri isto de a música ser um fluido. Aconteceu de repente ao sentir-lhe a viscosidade perfeita, as notas, como que derretidas, escorreram em uníssono para dentro de mim cavando o silêncio absoluto da harmonia pura (é na alma), dando-me a doce vertigem de ser, mostrando-me a solução. Fechei os olhos e respirei fundo para abrir o caminho em forma de calor: entra, fluido.

Foi Rachmaninoff quem fez isto. Concerto para piano número dois, se faz favor, e agora com licença, não falar comigo.

14/01/2016

A segunda dama (ou as três sereias, ainda não sei)

Tenho a certeza absoluta de que havia de escrever uma página todos os dias. Uma página é como quem diz uma data de linhas, o que quero dizer é muito: até me saciar. Isto no caso de ter a vida como eu queria e aliás quero. Havia também de andar de bicicleta muitas vezes por semana e ficar sentada ao sol a olhar para o rio com a bicicleta ao meu lado, se fosse de manhã cintilava a água do rio, se fosse de tarde pulavam os peixes que ainda ontem os vi pular que lindos, mas a bicicleta ficava ali a fazer-me sentir completa enquanto eu descansava, uma bicicleta é um objeto belo como qualquer pessoa vê (um objeto feio é por exemplo uma mesa de cabeceira). Havia de ler livros em triplo relativamente ao que leio agora, perder-me-ia muito mais em sonhos impossíveis e portanto havia de passar muito menos roupa a ferro. Por enquanto ainda sofro o adormecer antes de cair na cama e o acordar muito depois de já estar a pé. Tenho anos de dívida quanto ao sono, nesse ponto a maternidade foi-me dura, só nesse.

Bem, mas sentei-me hoje para escrever sobre uma coisa que foi o meu regresso ao ginásio depois de muitas ausências, evento que me valeu aquela cara de lado da professora como se ralhasse comigo e ralha mesmo, até diz menina Susana e eu digo estou viva (para ter graça). Gosto que ralhem comigo, e gosto da palavra ralhar, soa a borbulhar e borbulhar lembra água e água é a palavra mais linda (mas faz sede), só que depois entrou a minha filha de pijama de flanela e cabelo apanhado num rabo de cavalo todo torto, nunca anda direito aquele rabo de cavalo, mãe preciso de um livro e mãe preciso de um livro é música muito boa para os meus ouvidos (de entre duas filhas e treze sobrinhos, só consegui ainda converter esta filha à leitura e a segunda está quase mas ainda não está, sobrinhos zero, sou uma tia falhada, também falhei a converter irmãs mais novas, mas isso foi há séculos que falhei). Dei um salto da cadeira onde me sentava e sento (regressei), um livro, filha? sim, mãe, preciso de ler qualquer coisa, há séculos que não leio, e eu aproximo-me já cheia de ideias a rolar na mente, olha lê o meu irmão..., mas ela espera aí que eu sei o que quero. Senta-se no tapete junto à estante e mergulha os braços dentro da terceira cavidade a contar da esquerda na linha de baixo onde está uma parte da coleção livros do brasil que eu comprei com pouco mais que a idade dela. Quero Irving Wallace, deixa ver. Tirou a segunda dama e tirou as três sereias, o todo-poderoso não encontrou e o salão dourado eu disse esse não, porquê esse não?, ainda não, filha (devia ter posto vários pares de aspas aqui atrás mas fica tão feio que não vou pôr, se alguém quiser reclamar pode).

- O amigo do pai disse que não sabia que ainda se lia Irving Wallace quando há pouco lhe falei que queria ler Irving Wallace - a minha filha esteve a jantar com o pai e com um amigo do pai.

- E não lê, filha, esses livros são velhos.

Abriu um dos que tirou e disse iiiiiii fevereiro de mil novecentos e noventa e dois!!! Ela leu isto, porque eu tinha lá escrito a data em que o comprei na primeira ou na segunda folha do livro, precisamente em fevereiro de mil novecentos e noventa e dois (o bom das datas é que sabemos sempre quando foram escritas).

E pronto, já estou praticamente saciada embora tenha ficado com sede por causa da palavra água, mas antes de ir beber um copo, remato o post que me parece desengonçado e que vou endireitar com os títulos dos dois livros que nos braços da minha jovem filha de rabo de cavalo sempre torto foram levados para o seu quarto: as três sereias e a segunda dama.

E eu, antes de cair de sono na cama, hei de pelo quarto dela passar e pelo buraco da fechadura espreitar.

(às vezes esforço-me muito e consigo fazer rimas que me lembram a história da carochinha e do joão ratão)

12/01/2016

Ik ga weg

No sábado ia para a festa com esperança de a encontrar. Conheci-a precisamente há um ano, no aniversário desta amiga comum. Então, ao ver-me, perguntara-me se eu era de Espanha, és de Espanha?. Larysa é ucraniana mas vive na Holanda há anos. Sou de Portugal, dissera eu. Sentámo-nos por acaso lado a lado e desatámos a conversar, talvez por sermos as únicas não holandesas da festa. A dado momento, ao sacar do seu smartphone para me mostrar fotografias do neto e dos filhos e também para registar o meu facebook - por causa da empatia que se gerou entre nós - ouviu-me dizer que não tenho facebook. Larysa abrira muito os olhos fitando-me em busca de veracidade na minha estranha declaração, que confirmou no meu olhar, ou então noutro ponto qualquer de mim, inclinou a cabeça um pouco, pareceu condoída e, aproximando-se mais, baixou a voz: porquê?... não tens internet?

Um ano volvido levo pois vontade de a reencontrar mas também levo tudo na mesma, uma vida ainda sem facebook (embora comece a achar que se trata de um egoísmo comodista, mas disso não falaremos agora). Ao aproximar-me da casa vejo, encostada à fachada, uma bicicleta que suponho pertencer-lhe; lembro-me que no ano passado havia neve e a bicicleta dela era a única; este ano, sem neve, mais razão haverá para ser a dela, animei-me.

Ao entrar na sala onde estão os convidados, procuro o cabelo loiro platinado que trazia na memória, mas não o encontro. E só quando dou a volta a apertar as mãos aos desconhecidos e a dar três beijos aos conhecidos, ou aos amigos, dou de caras com uma Larysa de cabelo acobreado, mais comprido, a rir-se para mim com ar de quem pensa "ah, não me conhecias, mas eu vi-te!". Quando terminei a ronda dos cumprimentos, eram mais de vinte pessoas, Larysa faz-me sinal para me sentar entre ela e Anne, havia ali um lugar livre.

- Tu és de.... espera, não digas... ah! já me lembro, és de Espanha!

- Não, Larysa, sou de Portugal - se ela no próximo ano insistir com Espanha, sou capaz de deixar ficar.

- E já tens facebook? - disto não se esqueceu ela e, perante a minha resposta, atirou a cabeça para trás e deu uma valente gargalhada, visivelmente divertida - não faz mal, eu dou-te o meu cartão. Pegou na mala e tirou de dentro um cartão azul claro com a sua fotografia impressa, agora é um terceiro cabelo, nem o louro platinado nem este acobreado - eu mudo muito de cabelo, esclareceu-me, ao ver-me comparar a fotografia com a própria.

- Olha, no verso do cartão está aí tudo o que eu faço, vês? finanças, consultoria às empresas...

Mas isto é russo ou ucraniano, Larysa?, é ucraniano, claro, dá cá, vou-te ler. Leu, finanskaia, companiaska e coisas assim à russa, embora seja ucraniano. Perguntei-lhe se há muitas diferenças entre as duas línguas, não há, há poucas. Mais de metade das palavras, continua Larysa sempre a rir, são as mesmas. E as pessoas de um lado percebem as do outro? Percebem, a maioria dos russos percebe os ucranianos e o inverso também, só algumas pessoas não percebem (e aqui riu-se Larysa ainda mais). Com pena minha, não continuámos a conversa por muito tempo, de repente Larysa levantou-se, ik ga weg, tinha de sair. Despedimo-nos, disse-me para ir tomar café com ela antes de passar outro ano, quando cá voltares.

Com a saída de Larysa, virei-me para o outro lado, onde se sentava Anne. Amavelmente, Anne já estava preparada para conversar comigo, para não me deixar sem interlocutor, é assim que na Holanda se faz. Anne é alta, magra, tem os olhos grandes e azuis, usa óculos de massa preta e o cabelo curto, já grisalho. Anne é uma pessoa doce, tem uma voz agradável (sou estranhamente esquisita com vozes) e consigo perceber razoavelmente bem o que ela diz. Tem mãos compridas e fala muito com elas. Quando se ri, põe uma das mãos à frente da boca e baixa a cabeça, mas ri-se muito menos do que Larysa. Como estão as tuas filhas?, perguntou-me. Bem, uma já na universidade e a outra encantada com a escola nova. E o teu trabalho, como vai?, foi a minha vez de perguntar.

Dentro das minhas possibilidades e vencendo o ruído ambiente, a conversa continuou cordial, e pode dizer-se mesmo fluida, durante bastante tempo. Mais tempo do que com Larysa. Mas não foi por isso que me senti observada; as pessoas olhavam-nos, notei, olhavam Anne e olhavam-me a mim, talvez constatassem as diferenças entre mim e ela, a ex-mulher do meu marido.

08/01/2016

Valentes ziguezagues voados

O sol não me andava a nascer desde o início do ano e daí eu, sem poder melhor, vesti-me há dias para uma festa, mas fui trabalhar (segunda feira). De tal maneira estava diferente, que várias pessoas me perguntaram por que estava eu diferente. Dei-lhes uma razão bonita, a mesma que dei a mim, em vez de dizer a verdade. A dona Esmeralda, quando me viu, rasgou-me um elogio muito grande e depois falou de como se vestia quando era nova, que era mais ou menos como eu, ao que parece, forneceu detalhes, deu exemplos, trouxe-os para ali vestidos do tempo dela. A acompanhar, utilizou a gigante colher de servir o arroz para com ela desenhar círculos inteiros e outros meios, no ar, ilustrando vigorosamente que a gente, filha, depois casa e deixa-se ir, está a ver, encolhendo os ombros sem largar o talher industrial. 

- Dê lá uma voltinha...

Mas eu a voltinha não dei, antes me desviei para como foi o seu natal, dona Esmeralda?, ai filha foi bom, passou-se tudo bem, mas eu estava era já deserta de vir trabalhar, e a colherona é que agora deu a voltinha, no ar, para me dimensionar quão deserta estava a dona Esmeralda de vir trabalhar. 

- Olhe, acordei às cinco horas, filha. Fiz o meu chá, tomei o meu duche enquanto o chá arrefecia, está a ver. 

Estou a ver o colherão a voltear, agora mais devagar, isso estou a ver.

- Às seis e meia já estava no autocarro. Sabe, eu preciso disto, desta agitação - soltam-se, não aguentam mais, alguns grãos de arroz da colherzorra que, na agitação, faz uns valentes ziguezagues voados mas eu agora não me desvio.

Porque preciso de gente assim, preciso. Gente que faz de uma vida a levantar-se às cinco da manhã, a atravessar o rio todos os dias, a chegar ao trabalho várias horas depois e a fazer tudo outra vez ao fim da tarde, gente que faz de uma vida assim um conto que se quer ouvir contar.

E cantar. Mais tarde, quando passei no corredor, ouvi-a. A dona Esmeralda cantava.

05/01/2016

O telefone esperto

Dois mil e dezasseis já não me apanhou desprovida de um telefone esperto (vou, portanto, deixar de me queixar que tiro fotografias aos pés quando quero escrever uma mensagem ou iniciar um telefonema). Cedi às pressões da sociedade em geral e da família em particular e lá engoli o sapo: nos últimos dias do ano acedi em tomar um telefone esperto como meu, todo novinho, caríssimo (eu sou um bocado fuinha, tudo me parece caro). Escolhi-o na cor branca que eu gosto tanto do branco e depois meti-lhe uns bonecos de natal que estavam a querer vir em forma de app e eram bastante grátis. Ficou giro, um ambiente nevado e vermelho nos ecrãs e ficou também o meu telefone (a partir daqui deixo de escrever “esperto”) parecidíssimo com o da minha mãe, que é uma avó munida de semelhante tecnologia logo desde que esta rasgou o mercado; ainda ninguém sabia de nada, já a minha mãe tinha um desses (muito feliz). Nem pareço filha dela, a verdade é esta, a minha mãe é que devia ser minha filha, porque é décadas mais nova do que eu, ri-se bem mais do que eu e está sempre contente a minha mãe. E sincroniza aquilo tudo num instante, por exemplo a máquina do café com a bimby (e no natal o seu forno fez perú recheado, porco e cabrito tudo mais ou menos ao mesmo tempo, foi uma sincronização muito boa), acho que até já conseguiu sincronizar o seu telefone (o tal com o qual o meu se parece) com a tigela da comida dos gatos, e depois diz às vizinhas que maravilha, isto até dá tal tal, é uma app não sei quê. A minha mãe tem tudo. Até tem uma filha que não parece ser dela. Mas é. 

03/01/2016

Jane

No total não nos vimos mais que quatro, cinco vezes. Ou nos cruzámos na rua sem nome que atravessa a aldeia, ou em duas ocasiões num café que lhes oferecemos no final do ano, calhou assim nos dois últimos anos, não porque sejamos amigos especiais, mas porque as nossas casas eram as duas únicas casas habitadas na aldeia. Estão ambos avançados nos cinquenta, adivinho. Ela faz pudins no refeitório de uma escola da cidade inglesa onde moram, ele faz a manutenção dos helicópteros de dois grandes canais de televisão. No último dia de dois mil e catorze contaram que tinham planos para poderem vir mais vezes à aldeia serrana, para isso ele andava a fazer o curso de manutenção de aviões, aumentando as suas possibilidades de ser colocado em terras lusas se não permanentemente, pelo menos algo frequentemente.

- You know, it'll be likely to come more often to Portugal, isn't it? - ao dizer "isn't it?" olha para ela, que não responde propriamente, faz um trejeito de olhos (azuis).

É alta, tem mãos grandes e o cabelo muito curto, não se pode dizer que seja bonita e vê-se bem que é inglesa.

- I like my work, yes I do, but I enjoy very much being here, don't I? - é ela agora quem olha para ele a pedir a confirmação, que se reduz a um idêntico trejeito de olhos (também azuis).

Ele é grande e musculado, tem o rosto vermelho e as mãos secas, cabelo quase rapado, um sotaque muito inglês.

- We love it around here 'cause it's very quiet, don't we? - foi a vez dele e de novo olha para ela no "don't we?"

- Our daughter loves it, too, she used to come along sometimes, didn't she? - e assim por diante.

Eu comecei a morder-me para não rir, eles falavam literalmente assim, alternadamente e sempre a terminar na busca de confirmação junto do outro, talvez hábitos de casamentos com várias décadas ou então é costume lá na grande bretanha, sei lá eu. O que sei é que o ano passado foi-me difícil resistir até ao fim sem me rir, eles divertiram-me muito mais do que os fiz saber. Claro que simpatizei com eles, talvez principalmente com ela, que do seu cabelo curto e das suas mãos grandes parecia emanar um aroma à baunilha dos pudins ingleses de colégios internos como os dos livros da Enid Blyton nos quais recolhi tantos entreténs para os meus ávidos sentidos. E para além disso gosto de pessoas que vivem boa parte do seu tempo na cozinha, são pessoas doces.

Mas este ano o carro alugado só apareceu à porta do seu cottage no dia trinta e um, já tarde. Durante todo o ano de dois mil e quinze não vimos o Tony e a Jane, o cottage sempre com as suas janelas de portadas verdes fechadas.

Foi hoje, quando andava eu a fotografar folhinhas, que nos cruzámos na tal rua sem nome. Tony vem a comer um chocolate que parecia minúsculo naquelas mãos de arranjar helicópteros (e talvez agora também aviões), enormes. Ela caminhava mais atrás, também de óculos escuros, pareceu-me mais baixa um pouco, mas eu ia a pensar noutra coisa e enquanto me tentava lembrar do nome dela - que por felicidade me escapou - para poder dizer Hi Jane, you look different, I almost didn't recognize you, vi de repente que esta Jane é outra. Mais baixa, efetivamente, creio que mais bonita e mais nova seguramente. E então, a tempo, calei a gaffe, que substituí por um facílimo e muito conveniente Happy New Year!

Tony terminou o chocolate enquanto comentava que o tempo não tem estado grande coisa, pois não, ela sorria, esta nova Jane, e eu - sentindo um certo desconforto neles (ou foi impressão minha?) - não perguntei pelos helicópteros nem pelos aviões, despedi-me fingindo a pressa que não tinha e continuei a fotografar as folhinhas. Com pena. Tive saudades da outra Jane, acho que nunca mais a vejo.

01/01/2016

Faquinhas que cortam manteiga no sul (fogo nunca)

E foi quando nos apeámos com os saltos acrobáticos que nos distinguem dos outros grupos de amazonas guerreiras, a cada salto um grito de guerra, iiihaaaá, ana orquestra as acrobacias em silêncio, uma após outra, uma perfeita maestrina, ana é o estabilizador sempre que as emoções se sobrepõem às intenções da emboscada e o norte se começa a desvanecer num horizonte confuso. Reco-reco sabe ao que vamos, farejando no ar o perigo. Uma vez apeadas, flor segura o aparelho e continua o relato em sussurros para o gravador adquirido em segunda mão no Coisas, guardando cada detalhe para fazer a poesia mais tarde, quando limparmos as armas em redor da fogueira e assarmos as chouriças que estavam em promoção no Pingo Doce (que a Teresa diz serem más, muito más). Neste momento o efeito das licorosas desvanece-se por completo e estamos prontas (flor olha as unhas uma última vez para verificar se o verniz está bom, ana apressa-a com uma cotovelada). Sacudimos pois a neve dos capotes, cobrimos as cabeças com os capuzes, desembainhamos as espadas e avançamos. O nosso passo é silencioso, a surpresa está a nosso favor como já relatou poetisa flor em sussurros anteriores, as pilhas do gravador estão fracas e tememos por isso o pior, mas já nada nos detém (para além disso, sabemos que Teresa traz um conjunto novo que comprou no Lidl por onde passámos há três jornadas atrás). Pela janela do iglô vislumbramos a Pirata com o olho tapado erguendo um copo de vidro tosco soprado na Marinha Grande, ao que se seguem os copos de grande Palmier Encoberto (por uma máscara quase total, só deixa belo cabelo de fora) e Cigano Maltês a lançar a gargalhada da vitória para trás, mostrando a linha do seu másculo pescoço às gentes. Batem os copos em alegria crescente e nós, guerreiras, vamos avançar! Escancaramos a porta e o brinde que ainda estava no ar congela de surpresa ao ver-nos assim, quais capitãs de outros mares do sul, e então acontece o que ninguém esperava: reco-reco vislumbra Cutxi e murmura três ronquinhos que a fazem deitar-se no tapete felpudo do Ikea, cauda a abanar de alegria incontida, flor retoma os sussurros para o gravador, não se pode perder isto, Cutxi dá três ladradinhas em resposta, mas afinal onde está a MINHA VACA, grito eu antes que todos os corações amoleçam com a ação fabulástica do Cupido a desenrolar-se no tapete do Ikea, levo uma pisadela de flor, que não aceita isso, não, qual TUA VACA, Teresa encolhe os ombros e sopra para o teto, impacienta-se connosco, ana senta-se vencida e é então que entra Carla com o seu tabuleiro de delícias a fumegar e copos para todos que, afinal, o ano acabou de entrar.
(e o barulho das espadas a cair é secundado pelo tinir dos copos no ar)