a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

20/10/2015

Canteiro de flores mortas

Já tinha passado um tempo depois da hora em que as luzes ainda se acendem no corredor de acesso à cave, quando o atravessei. Apalpei o chão com os pés onde sabia estarem os degraus, não queria cair. Encontrei-os e a seguir a eles a porta corta fogo, que se abriu com um estalido. O silêncio na cave é frio e está morto, um fruto seco, bolorento, de muitas estações iguais de tantos anos tristes. Entrei; o paralelepípedo de plástico com a sinalética da segurança ilumina o ar o suficiente para mim; com as costas direitas corto o abraço surdo que me ecoa os passos e atravesso a cave até ao fim, onde o fio de luz se fina.

Felizmente tinha deixado a alma lá fora, escondida no canteiro das flores já mortas, a ler Clarice Lispector. Quando cheguei à bancada de trabalho, no canto mais fundo da cave, tentei imaginar o texto e acendi a luz do candeeiro metálico de braço extensível que alguém pendurou na prateleira de cima e que fica sempre a oscilar quando lhe toco. Não olhei para trás, nunca olho para trás. Pus os óculos na cara, inclinei-me e liguei os fios sem tremer as mãos. Quando terminei devolvi os óculos ao bolso, apaguei o candeeiro que ainda oscilava, voltei-me e vi-me caminhar na luz ténue, esverdeada, a minha bata branca que se afastava como um fantasma, o meu cabelo a cair pelas costas como se fosse real, subi os degraus para dentro do corredor que vi engolir-me num trago. Esgueirei-me então pela frincha da outra porta, a que dá acesso à rua, e regressei ao canteiro das flores mortas onde me esperava o livro aberto na página do texto que tentei imaginar.

(se não fosse chorar sempre que oiço Ave Maria de Schubert, não tinha a certeza absoluta de existir)