a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/07/2015

Treze de julho

Vou contar uma coisa que aconteceu no dia treze de julho do ano dois mil, faz portanto hoje quinze anos e o post é grande. E talvez não seja para pessoas sensíveis.

No trabalho, fiz uma apresentação à administração da entidade patronal, propondo a criação de uma nova área que me parecia faltar (tinha levado meses a preparar aquilo em casa). Correu muito bem e eu vim para casa feliz, realizada, na minha cabeça já se desenhava a implementação de tudo, dizia coisas a mim mesma, fazia planos, enquanto conduzia o carro, cantei. Apanhei as duas filhas nas escolas - uma tinha três anos e a outra cinco meses - que provavelmente me ajudaram a cantar o resto até chegarmos a casa.

A minha avó tinha morrido há menos de dois meses; o único filho dela, meu pai, tinha ido um ano antes. Restava o meu avô, um pouco confuso e com oitenta e cinco anos de idade. Levei-o para minha casa para fazer de meu filho mais velho durante algum tempo. Nesse dia, a propósito de nada em especial, tinha convidado a minha irmã Catarina para lá jantar connosco.

Quando cheguei a casa, olá avô, olá filha, como estão as meninas? Beijou-as e a mim também. A pequenina tem de comer e depois faço o jantar para nós.

Peguei na bebé que já começava a choramingar e o meu telemóvel tocou. Estupidamente, muito estupidamente, atendi. Era a advogada que nos estava a ajudar a tratar de coisas que eu não sabia fazer. Tinha muito para dizer, a advogada, e eu tentei interromper, desculpe, preciso de dar o jantar à bebé. Ela não me ouviu, continuou, passaram trinta segundos e a miúda abriu berreiro junto ao meu ouvido esquerdo. Desculpe, preciso mesmo de desligar. Nada. Mais isto e mais aquilo. Nisto, a mais velha vem ter comigo e puxa-me pela roupa, mãe, mãe, ouve, anda cá, mãe! Espera, filha. Enxotei-a com o olhar, bruscamente, ela zangou-se, vi-a desaparecer no seu quarto e fechar a porta. O berreiro no meu ouvido esquerdo continuava e a advogada finalmente deu-me uma aberta, vou desligar, com licença. Senti um alerta surdo e fui directa ao quarto das miúdas, abri a porta. O frasco do xarope da tosse na mão dela, a rolha em cima da mesa e um olhar comprometido, os lábios brilhantes. Estupidamente, muito estupidamente, o frasco estava ao seu alcance. Passei o meu dedo indicador na língua dela e provei. Tinha bebido o xarope. Bebeste, filha. Sim... Olhei para o frasco, estava quase vazio e tentei recordar quanto tinha antes. Não me lembrava.

A campainha tocou. Virei-me para ir atender, ainda com a bebé ao colo e a chorar, quase tropecei no meu pobre avô que não sabia o que fazer, fui abrir a porta à minha salvadora, toma a miúda e prepara-lhe um biberão, por favor. A minha irmã tomou a sobrinha nos braços e fez o resto. Virei-me para a mais velha. Anda cá, conta quanto bebeste. Não sabia, chorava, tremia. Peguei no telefone e liguei para a linha de saúde 24 de onde me remeteram para outro serviço do qual só me lembro ter ouvido a palavra venenos. De lá perguntaram há quanto tempo foi, cinco minutos talvez sete, faça a miúda vomitar já, meta-lhe os dedos na garganta. Se não conseguir fazê-la vomitar em meia hora, tem de a levar às urgências.

Desliguei. Deitei-a no meu colo e enfiei-lhe os dedos na garganta. Ela chorava e mordia-me, mas chorava mais do que mordia. Meti-lhe azeite pela garganta abaixo, ela engasgou-se, chorou mais. A meia hora estava feita.

- Catarina, vou com ela ao centro de saúde, toma conta do avô e da bebé, já venho.

Pensava eu. A caminho do centro de saúde, a miúda a choramingar, ela nervosa, eu também, tentei contactar o pai, meu então marido, telefone ainda desligado. Centro de saúde em três minutos, atirei com o carro para o primeiro buraco que encontrei e corri escada acima. Faça-a vomitar, por favor, eu não consegui. Tive a (única) decência de levar comigo o frasco do xarope, para mostrar. Ela bebeu isto. Há quanto tempo? Mais de meia hora... Já saiu do estômago, agora tem de a levar ao hospital. Vá e vá já. Mas não sem levar uma brutal reprimenda e ouvir umas coisas sobre mães que deixam medicamentos ao alcance das crianças. Santa Maria, voei. No caminho informei a minha irmã, tens que ficar mais um bocadinho, está bem? Entrei com o carro, urgências, a miúda bebeu isto, não sei quanto bebeu. Outra brutal reprimenda. Eu sei, eu sei, não volta a acontecer, ainda pode fazê-la vomitar?
Não, mãe, a miúda vai cá ficar internada, tem de fazer uma lavagem. Internada?!?! Sim, primeiro limpar o estômago, depois o resto. Levaram-na e eu fui atrás, deitaram-na. Eram duas enfermeiras e iam enfiar-lhe um tubo pelo nariz para a fazer beber por aquela via o que ela recusou pela boca: um copo cheio de carvão líquido. Perguntaram-me se eu queria mesmo ficar, não ia gostar de ver. Fiquei. Ajudei a segurar nela. Enfiaram-lhe o tubo, meteram o líquido preto pelo nariz. A minha filha esperneava, chorava como podia. Depois sentaram-na e ampararam-na e ela vomitou o carvão. Mãe, agora senta-se aqui com ela ao colo e segura-lhe os braços atrás das costas para ela não arrancar o tubo porque vai ferir-se. Dentro de duas horas podemos ter de repetir, depois fica a soro, para limpar o resto.

Duas horas. Ela teve tempo de acalmar sentada ao meu colo, de costas para mim e, com as mãos entre ela e eu, abracei-a de forma a prender-lhe os braços sem ela se sentir presa. Contei-lhe histórias, todas as que me lembrei. O meu coração gritava de ódio de mim mesma. Isto parece mentira, mas é verdade, isto: entraram duas profissionais de saúde para a sala em que estávamos e uma miúda mulata, de quinze anos. Tinha tentado suicidar-se e elas esforçavam-se por falar com a miúda. Faziam-lhe perguntas que não foram respondidas. Eu via-a de costas, os ombros descaídos num desânimo que não mais esqueci, hoje terá trinta anos, se viver. Continuei sempre a falar baixinho com a minha filha, que já quase não soluçava. A história daquela adolescente entrava-me pelos ouvidos adentro na forma das perguntas que lhe faziam as duas mulheres, lembro-me que as vozes delas eram doces, impregnadas de compreensão, de paciência, talvez de amor. Depois do interrogatório que não deu resultados, saíram todas, ficámos nós e as histórias.

O tubo foi por fim retirado e a minha filha seguiu para a enfermaria de pediatria. Havia muitas camas, algumas resguardadas por cortinas. Iamos passar ali a noite. Deitaram-na numa das camas do meio, puseram-lhe uma fralda, ela informou que já não usava fralda há muito tempo, que não era preciso. Mas tinha de ser, ia ter mais tubos colados aos pulsos e ao peito e equipamentos com luzinhas na outra ponta dos tubos, aos quais ia ficar ligada durante a noite. Para além do soro enfiado na veia, claro. A mim deram uma cadeira de madeira para eu ficar. Agradeci a todos os santos por poder ficar. Eu, que me sentia merecedora de apedrejamento e a história ainda não acabou.

Na cama ao lado da nossa estava uma menina de quinze meses. Vestia apenas a fralda e tinha uma ligadura gigante à volta da cabeça. Tinham-na operado nesse dia, era um tumor maligno e estava a recuperar. O pai contou-me isto e disse que tinham esperança. Ia ficar com ela numa cadeira igual à minha. Estava escuro, lá fora a noite tinha caído há muito e eu finalmente pude começar a chorar. Senti-me horrenda quando aquele pai me perguntou o que tinha a minha filha. Ele não se mostrou horrorizado, porém. A minha filha passou uma noite tranquila. A outra menina de vez em quando gemia e estremecia um pouco. Nessas alturas, o pai falava-lhe baixinho com uma voz tão carregada de amor que quase parecia sobre humana. Sempre que ele falava à filha, eu rompia em choro, até tive de sair da enfermaria para não fazer barulho. Todas as crianças dormiam, de pais só estávamos nós. Durante a noite, num ou noutro momento em que não chorei, veio-me à memória a alegria que tinha trazido do trabalho nesse dia. Parecia irreal e completamente tola.

Na manhã seguinte vieram os médicos e enfermeiros fazer a ronda, deram alta à minha filha. A mãe da outra pequenina veio render o pai e eu abracei-a, não sei que lhe fiz, queria dar-lhe vida para a filha, se pudesse.

Não há dia treze de julho que me não lembre desta criança e da outra de quinze anos. E em muitos outros dias também. Talvez por isto, por me ter visto revelada numa mãe imbecil e descuidada, patética, assim contrastada com dois casos tão terríveis, talvez por ter visto quão maravilhosos e enormes são aqueles profissionais de saúde com quem me cruzei no Hospital de Santa Maria, talvez por isto eu tenha aprendido a valorizar a vida e não tenha o costume de ser má.

Má fui ali, naquele dia e por toda a minha vida, ao deixar o frasco de xarope ao alcance da minha filha.