a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/06/2015

Queres casar comigo?

Noto que hoje a cautela que transporto voluntariamente ao atravessar o terraço (tanto sol já me fez estender três máquinas de roupa, mas isto não se deve levar à letra), está aumentada, inchou, inchou. Sei que estas facilidades se devem à dose de alegria extra que trouxe no coração, ontem, de Lisboa. Desvio-me toda a manhã, com sucesso, das formigas que galopam, levam graça e muita pressa de chegar ao último ladrilho, depois atiram-se escada de pedra abaixo sem morrer.

Ontem à noite, ia a meia-lua alta, vem o meu coração tão cheio nas medidas e o carro a subir a serra serpenteando à vontade da estrada estreita e também deserta se não contarmos com as luzes máximas dos faróis e mais três coisas, ai ai.

Que coisas?

É a seguir a uma curva que sai o primeiro disparado do lado direito, a correr, a correr, e só pára na berma esquerda, o carro faço parar também, junto com a minha respiração, e ficamos a olhar um para o outro, coisa rica que está ali (queres casar comigo?). Mas não me mexi e ele escondeu-se nas ervas, as parvalhonas.

A lua não teve tempo de fazer nadinha e, do mesmo lado direito, sai lançado outro, também vou, também vou, pernas para que vos quero e enfiou-se com o primeiro nas mesmas ervas que os querem todos, as invejosas (não podem ver nada).

Esperem por mim, esperem por mim, corre veloz o terceiro corpinho jovem todo malhado, castanho, coisa mais linda aqui da mamã que continua sem respirar e assim se manteve mais alguns minutos, nos quais se tornou a instalar o deserto, as ervas não mais deixaram ver o meu tesouro.

As três crias de javali a fazerem-me transbordar o coração de alegria e eu não sei o que fiz para merecer isto.

Portanto toda a manhã a estender roupa e nem um pontapezinho de nada, inadvertido, no jogging das formigas.

25/06/2015

Forrar helicópteros ou mesmo aviões de asa dupla

Sabemos que escrever é tão bom, que se arranja qualquer coisa para servir de desculpa, ai não sei quê tinha de ser, eu faço muito isso quando não me acontecem coisas maravilhosas, não passam jacarandás em flor por mim nem José Rentes de Carvalho (saudades) me aparece à frente. Por exemplo, no outro dia encontrei uma unha de gel no chão, à entrada do edifício onde trabalho, e quase mudei do estado de caminhar em estilo de entrar no edifício onde trabalho para deter-me e baixar-me graciosamente olá unha de gel no chão, hesito dentro de um nano segundo, é tipo apanhas isso e depois deitas um post ao mundo, olha que bom. Mas não, a unha estava para ali só, sem dedo nem mão nem nada e eu, que sou má como as cobras para as unhas de gel em geral, continuei no estado em que ia.

Portanto, sem outro assunto, subscrevemo-nos, ai não é, andas a distrair-me, tu, voltemo-nos, isso sim, para o tema que valeu e se vai meter aqui connosco. Sem desculpas.

No final da minha aula de dança de ontem (e, caso continues a distrair-me e eu não me despache com isto, passa a aula para anteontem, olha já passou), uma das minhas colegas leva a mão ao cabelo, apanhado atrás, um cabelo lindo que ela tem, sorri e pergunta-me se tenho facebook. É a pergunta que me atira para a caixa da costura onde se arrumam alfinetes que pertenceram à minha avó, aliás às duas, misturei-os todos, junto à qual se ouve a Tourada de Fernando Tordo numa telefonia que já só toca na minha memória e, em cima da mesa de madeira escura, está o naperon que uma delas fez (as minhas avós produziram naperons que, bem esticados uns ao lado dos outros eram capazes de cobrir toda a rede de autoestradas do nosso Portugal e se a Joana Vasconcelos apanha isto é possível que se entusiasme com tanto naperon tão bom para forrar helicópteros ou mesmo aviões de asa dupla que são ginásios muito usados para jogging de interior, lá estou eu a desviar, importas-te de parar com isso?, que aborrecimento).

- Não, não tenho - avanço o meu melhor sorriso, esta colega merece-o, e componho o meu próprio cabelo e a desculpa, que desta vez é verdadeira - não arranjei motivo para fazer um facebook às pessoas.

Ela não se escandalizou, não me perguntou se tenho internet, nem me disse que até a mãe dela tem facebook (já tudo isto me aconteceu). Mantendo a calma, ouviu-me dizer que faço um blogue com posts enormes e que isso é quase o mesmo que facebook. Mas muito melhor. De certeza.

21/06/2015

Lasca de queijo mozzarela às formigas (post praticamente científico)

Quando ontem de manhã saí de casa, estava a rua cheia de calor e formigas. Não tendo optado por escrever sobre o calor, vamos às formigas, que são umas senhoras formigas.
Atravesso a estreita rua em direcção ao meu carro e cruzo-me com um exemplar que vem correndo sobre os paralelepípedos que forram este piso muito ancião feito a pensar nas carroças, e vem a formiga correndo, dizia eu e dizia muito bem, com uma abelha morta ou moribunda, não sei se ao colo se às costas, a quantidade de pernas que a formiga traz, entre viradas para cima as da abelha e viradas para baixo as próprias, atrapalhou-me o discernimento e para além disso eram horas de ir às sardinhas antes que esgotassem (esgotaram). Eu nunca tinha visto uma formiga correr tão veloz com uma abelha morta ou moribunda, nem aqui no meio da serra nem em lado nenhum.
Durante toda a tórrida tarde que se seguiu a isto, pudemos observar outros exemplares da mesma espécie a limpar o terraço: viu-se passar um pirilampo morto mas ainda quase fluorescente na extremidade, coitadinho, uma aranha que esperneava, põe-me no chão sua doida, parecia querer a aranha dizer, pedaços de pétalas voadas da buganvília, folhas várias em bocados de diferentes tamanhos e coisinhas diversas que não tive oportunidade de identificar. Tentei registar em vídeo o que faziam estas obreiras, mas não dispus de celeridade na perseguição, escaparam-me todas.
No final da tarde, quando estava já todo o lixo removido do terraço, vê-se uma nova brigada render a anterior. A nova brigada é composta por elementos feitos em modo muito mais económico no que respeita ao tamanho. Afastado que está o perigo de se tropeçar numa daquelas formigas gigantones que laboraram durante todo o dia, ainda o sol dá uns apertos valentes à gente mas são horas de jantar. É, então, ao atravessar o terraço com os pratos na mão, que escapa uma lasca de queijo mozzarela de cima da massa italiana e se vai depositar precisamente no chão que praticamente brilhava depois do que já se narrou aqui. Desta vez consegui filmar. Mal mas consegui.

18/06/2015

Sentado no chão

Hoje pela manhã decidi que não saía para o trabalho sem postar no blogue um dos trechos de Saramago que mais abracei no último livro que dele li. Não tendo eu acarinhado o hábito de marcar passagens nos livros, pensei que seria como procurar agulha no palheiro, ainda para mais calçada, ou seja, tarefa para demorar. Saltei da cama e fui à estante buscá-lo. Abri-o ao calhas. Virei a página ímpar e, no seu verso, encontrei.

Mesmo com a ajuda invisível que tive na busca, saí de casa tarde. Ao ligar o carro, fui lembrada pela décima quarta vez que o depósito de gasolina estava a pedi-la. Dada a curteza dos meus trajectos (sim, podia tomar a bicicleta não fosse o medo de ser esmagada pelos veículos longos de transporte de automóveis novos), posso andar assim pelo menos uns três dias sem novidade. Mas pensei que talvez hoje já fosse no quinto dia de avisos, ou sexto, o que pode perfeitamente significar o carro já ter entrado em sofrimento.

Sendo eu uma pessoa do tipo cidadã normal, não se percebe que tenha tanta preguiça de parar em estações de serviço. Creio que se trata da abundância de ar condicionado nestes locais sem magia nenhuma no momento de pagar, com oferta de espera em fila, a certeza da pergunta sobre o meu número de contribuinte e os meus olhos a morrer pelo caminho nas capas das revistas que mostram coisas imediatamente entediantes (acumula com o esforço de não me lançar aos chocolates).

Por isso penso que as revistas deviam pôr nas capas, em todas elas, eu não me importava nadinha e até agradecia, aquela fotografia do Varoufakis sentado no chão. Que bem que ele ficou.

(não há piada política camuflada, absolutamente nenhuma, o que há é os meus olhos saberem ver as coisas tal como elas são) 

Cinco anos sobre a sua morte e ele não morreu

"... e nisto se estava quando, meio-dia exacto era, de todas as casas da cidade saíram mulheres armadas de vassouras, baldes e pás, e, sem uma palavra, começaram a varrer as testadas dos prédios em que viviam, desde a porta até ao meio da rua, onde se encontravam com outras mulheres que, do outro lado, para o mesmo fim e com as mesmas armas, haviam descido. Afirmam os dicionários que a testada é a parte de uma rua ou estrada que fica à frente de um prédio, e nada há de mais certo, mas também dizem, dizem-no pelo menos alguns, que varrer a sua testada significa afastar de si alguma responsabilidade ou culpa. Grande engano o vosso, senhores filólogos e lexicólogos distraídos, varrer a sua testada começou por ser precisamente o que estão a fazer agora estas mulheres da capital, como no passado também o haviam feito, nas aldeias, as suas mães e avós, e não o faziam elas, como o não fazem estas, para afastar de si uma responsabilidade, mas para assumi-la. Possivelmente foi pela mesma razão que ao terceiro dia saíram à rua os trabalhadores da limpeza. Não traziam uniforme, vestiam à civil. Disseram que os uniformes é que estavam em greve, não eles."

in Ensaio sobre a lucidez, José Saramago

16/06/2015

Coragem para o ensopado de borrego

Claro que reparei que os festivais de verão estão aí. Sei perfeitamente a razão que está na base do retorno em forma de ruído branco que sai do fundo de mim quando presente ao conceito festivais de verão. Vou faltar a todos sem falta.

O último concerto parecido com um festival de verão recebeu-me por engano e por levar duas filhas ainda minúsculas mas com uma adoração maiúscula pela banda que ia tocar: corrigiu-me qualquer intenção de reincidência futura. Não fomos esmagadas porque me lancei a rasgar caminho entre as gentes espremidas, houve que salvar com urgências os meus rebentos de asfixiarem mesmo ali. Por conseguinte, a menos que, num rasgo de loucura, se lembrem de mandar vir o violino do David Garrett agarrado ao próprio, não levantarei a cabeça do crochet ao serão.

Assim encafuada e ainda a salvo no mês de junho, estremeço apenas ligeiramente embora já de irritação: gostaria de continuar a ler os jornais online sem ver o summer fest da cerveja (era perdoar se não for este o nome), a acender e a apagar no ecrã, a picar muito nos meus olhos, a meter-se à frente dos títulos, anda que já vens tarde e isso. Aborrecido.

Sou, claro, de uma colheita antiga. Aprendi a tricotar com as mãos e consegui ganhar-lhe um jeito quase ao nível do da minha mãe, que fui treinando nos intervalos das leituras. Os meus olhos cresceram formatados nos desenhos dos livros da Anita. Lembrar-me-ei sempre do meu primeiro livro: o número vinte e sete, Anita em viagem, oferecido pela mão que me ensinaria a tricotar. O Pantufa também estava na capa e a Anita vestia uma gabardina amarela muito bonita, que esvoaçava um pouco. Abri-o como se descobrisse um tesouro e escrevi o meu nome na primeira folha, devagar. O "S" era difícil, ficou torto.

De forma que quanto aos festivais de verão, mais depressa arranjarei coragem para o ensopado de borrego lá da cantina. 

14/06/2015

Há frango de carne

Bati os pés nos restos de capacho à entrada do café Ernestina. Na mão levo o dinheiro certo para o pagamento do serviço que o senhor Armando prestou ao nosso jardim. Já conheço os habituais fregueses, três ou quatro homens que ali afogam uma solidão tão coçada que talvez já se tenha podido vestir de um hábito consolador ou então é a minha vontade que o faz. Como habitualmente, as vozes que atiravam palavras à vez para o ar interior, calaram-se para me ceder passagem, não fosse eu tropeçar nelas.
- Boa tarde senhor Armando, aqui tem o dinheiro.

Aproximo-me do balcão. Este café mais parece uma tasca, é o único estabelecimento comercial que se encontra em toda a extensão de três aldeias serranas, vizinhas e companheiras no mesmo abandono comungado pelos seus habitantes. Procuro o papel que da última vez vi, pendurado na parede, com a inscrição "há frango de carne". Queria fotografá-lo ou então perguntar à dona Ernestina porquê de carne e depois saciar a minha curiosidade. Mas no lugar dele apenas o cartaz das festas da região, que começam para julho. Enquanto durarem, a solidão ficará só, chutada para o alto pelas romarias, quedar-se-á pairando acima dos cumes dos montes, refém das garras das águias que fazem o verão ou será levada pelo vento e cortada às fatias nos geradores eólicos.
Não sei se por não haver aparelho de televisão emitindo os ruídos, enchimentos feitos à medida de solidões ainda mais fundas, das que vivem na cidade, ou por um motivo mais escondido, gosto de vir aqui.
Encostado ao balcão, está um homem que não conheço. Falta-lhe o braço esquerdo. À sua frente, dona Ernestina - a dona do café ao qual emprestou o nome próprio - tinha colocado algumas rodelas de chouriço em cima de um guardanapo, um papo-seco e um copo de vinho tinto, cheio até antes de entornar. O homem saca do canivete com a mão direita e abre-o empurrando-o contra a superfície lisa do balcão.
- Quer ajuda? - pergunta a dona Ernestina.
- Quer ajuda? - pergunto eu.
- Não, obrigado. Eu consigo - sorri e eu vejo que os seus olhos são verdes.
Canivete aberto é então pousado na superfície que o ajudou. Depois, a mesma mão direita pega no pão e entala-o de lado entre a barriga, que é saliente, e o balcão. Com o canivete, lançando golpes experientes que fazem o caminho, abre o pão ao meio. Eu observo e digo já está habituado.
- Já. São quinze anos... Descasco batatas, faço tudo. Mas demoro muito tempo - as palavras muito tempo levam mais vagar, fazem jus ao significado e os olhos verdes sorriem de novo (como se fossem felizes?).
Hesito se pergunto como foi, há quinze anos, que a vida lhe levou o braço esquerdo ou se volto ao frango de carne, dona Ernestina, mas porquê de carne?
- Venha cá tomar um cafezinho comigo - a voz da dona Ernestina interrompe-me a hesitação.
- Um cafezinho?...
- Sim, filha, venha, venha - e faz sinal para a seguir para a sala de dentro, que é de uso privado.
Não são muitas as pessoas que inesperadamente me convidam para um café fora de tradições ou cortesias e dentro da sua genuína vontade. Digo imediatamente que sim, faz-me feliz este convite e sigo pelo caminho indicado, intrigada por não ter arranjado uma desculpa, apesar de tudo.
Dando a volta ao balcão, vejo-o por dentro. Espreito para as suas entranhas ocultadas a quem está do outro lado, procuro qualquer coisa, uma resposta e é como se fosse eu, agora, por um segundo, a atender os fregueses que pedem vinho e rodelas de chouriço.

Mesmo assim, não consegui descobrir por que raio de motivo gosto eu de vir aqui.

10/06/2015

Pó, cinza e recordações (com notas de tremura)

Começa mais uma tarde a cair, mas nesta já não há desculpa. É feriado, dia de Portugal, portanto tenho mesmo de contar.

(começa o rodeio)

Bem sei que a poesia não se deixa apanhar por mim. Enquanto a persigo com marcha insistente, porém desajeitada e grosseira, lembrando patas de elefante, dedico-me esta manhã a compor uma jarra de flores que fui apanhar, quer dizer, roubar, depois de saltar por cima de uma lagartixa que se atravessou no meu caminho. Olha uma lagartixa foi tudo o que me saiu, assim, de tesoura na mão. Com lagartixas não temos problemas, mas lembro-me que não conheço nenhum poema que as mencione. As flores apanho-as com as mãos trémulas porque não tenho jeito para roubar, mas a casa que possui a fachada junto à qual elas vivem, não tem ninguém há muito tempo. Mesmo com uma desculpa tão boa, a composição florida, depois de pronta, vê-se bem que não obedeceu às minhas melhores intenções.


(fim do rodeio)

Entrámos no recinto da Feira do Livro já lá vão quatro tardes e quase todas quentes. Ele ainda não tinha chegado, mas eu posicionei-me imediata e estrategicamente junto à mesa com pilhas de livros no meio das quais a fotografia de rosto sorridente me diz que é ali mesmo. Espero por este momento há um tempo considerável e portanto estou ligeiramente ansiosa. Daqui já não saio.

(Erik afasta-se para ir comprar garrafas de água, a minha filha também desaparece, vai procurar um livro lá dela)

 Também está à espera dele? – meto conversa com a senhora que já ali está, sentada ao lado de um saco que promete o conteúdo.

- Também. Adoro a escrita dele. Hoje trago estes - e abre o saco para me mostrar que são vários os que traz - mas amanhã volto cá com o resto, não podia carregar os livros todos de uma vez, tenho nove.

Gosto de pessoas que gostam de outras. E que vêm dois dias seguidos à feira para ter os livros todos autografados. Portanto continuo a alimentar a conversa com esta senhora, que passou por me dizer que é transmontana - como ele - e que viveu no Brasil - como ele.

- Temos estes dois pontos em comum - e sorri orgulhosa.

Das duas, não sei qual está mais ansiosa, mas quem o vê chegar sou eu.

- Ele já chegou, está ali - e aponto discretamente para o abraço do Francisco José Viegas no qual ele quase desaparece.

(Erik chega com três garrafas de água na mão, declarando que um euro é muito barato por uma garrafa de água destas num sítio destes, um euro é no money)

Deixo os minutos de privacidade entre ele e a transmontana dos nove livros e avanço já para o momento em que me sento à sua frente. Apertamos as mãos.

- Eu ainda estou a tremer, é da viagem, são muitos quilómetros desde Trás-os-Montes, sabe - sorri-me e pergunta - Qual é o nome?

Digo o meu nome e também estou a tremer, mesmo sem viagem, mas ele

- Não tem Maria, antes ou depois, é nome sem Maria?

- Sem Maria, não sou Maria.

E, de repente, olha-me de novo e sai isto:

- Tem um blogue, não tem?

- Tenho...

- Não me diga qual é, eu sei, espere.... ai, diga lá a primeira letra...

Eu disse as primeiras letras e ele disse o resto. O grande José Rentes de Carvalho lê este blogue e deu-me uma enorme alegria ao dizer-mo.

Quando me despedi dele, não tinha vontade de sair dali: o carinho com que me tratou trago-o guardado no coração (para a próxima, levo os livros todos).

(Pó, Cinza e Recordações, o livro que acaba de ser autografado alguns parágrafos acima e sem Maria no nome, foi escrito entre Maio de 1999 e Maio de 2000, em forma de diário. Neste período nasceu a minha segunda filha, a que foi acima referida. Já na estação de metro, no regresso a casa, dei-lhe a ler o texto do dia do seu nascimento. Quando lhe estendi o livro aberto, ainda tinha as mãos a tremer.)

05/06/2015

Os jacarandás a arrasar lá fora e tanta poesia por fazer

Estou bastante esperançada com o regresso das colisões entre protões europeus em cachos e à força toda, que é caso para dizer assim. Europeus, quer dizer, em princípio são suíços e quando muito encontram-se vestígios de franceses. De qualquer forma, já que fazemos parte da Europa, eu achava giro a gente exportar comboios de protões portugueses para ajudar a compor os teraelectrãovolt no CERN, naquelas trincheiras de ataque, ou melhor, nanotrincheiras de ataque, ao mesmo tempo que se aumentavam as exportações e consequentemente ganharia a economia nacional o músculo novo de que tanto precisa.

Isto tudo por causa da matéria escura, da anti-matéria e até mesmo para a gente saber as tendências primavera verão do ano três mil milhões e meio, que é o mesmo que perguntar ao universo

- Universo, para onde te expandes tu com tanta pressa, querido? (“querido” é fundamental)

E portanto pimba com os protões.

Creio que teremos bom preço para exportar quantidades astronómicas de protões muito bons, cá da terra, uma vez que não os gastamos a produzir energia nuclear, ou seja, temos imensos.

Mas porquê isto agora, assim, numa sexta feira destas, com os jacarandás a arrasar lá fora, tanta poesia por fazer e a feira do livro cheia de vontade que eu lá volte?

Porque apanhei hoje de tarde a dona Esmeralda (eu sei que já ontem falei nela... enfim, mas é só mais isto, que também há quem escreva todos os dias sobre um pássaro tenor ou lá o que é o pássaro, sem sequer revelar a espécie, o que dificilmente se perdoa, adiante), a dona Esmeralda, dizia eu, estava a conversar com o porteiro, que gosta muito dela (pudera). Ora diz o porteiro de repente que a senhora (eu) é silenciosa (não me ouviram aproximar porque falam os dois muito alto) e, para além de silenciosa,

- Parece mesmo a Nossa Senhora, é o rosto.

Estaquei com a chávena na mão e senti cair-me um pedaço de céu em cima. Ou seja, fiquei p’rali sem resposta sem nada.

Depois, já com o chá meio na mão meio bebido, é que percebi que parecer-me com a Nossa Senhora não é nada mau: deu-me uma nova perspectiva de existência que me levou calma e ponderadamente a lembrar-me do que podemos fazer à nossa economia com as hordas de protões que nos sobram da energia nuclear que não produzimos. Foi isso.

(e depois, ao chegar a casa, quando deixei os sacos de compras do supermercado à porta do elevador enquanto fui arrumar o carro no meu lugar de estacionamento, não tive medo nenhum que me roubassem os robalos)

04/06/2015

As pernas não tinham dentes

Já almoçámos e estamos a tomar o café na copa enfiada a um canto do refeitório, a Carla e eu. De repente a dona Esmeralda, não tendo ninguém na linha (a linha é o comprido balcão com as bebidas, as sobremesas, saladas e o que mais houver para almoçar, que a separa de nós enquanto nos serve os pratos), avança com passos rápidos na nossa direcção, traz cara de caso e entra na copa assim. 

Pousa a mão no meu braço e aproxima o rosto um pouco mais do que o necessário, considerando a minha boa acuidade auditiva, mas deve ser porque baixa a voz.

- Sabe que sonhar com carne ou dentes – pausa para levantar e descair as sobrancelhas várias vezes apontando o queixo na direcção acho que do meu nariz de forma muito significativa – é... sabe, não sabe?

- Não.

- Sonhar com carne ou dentes?! Não sabe?! – a indignação anulou o esforço de manter a voz baixa e suspendeu-lhe as sobrancelhas na posição de levantadas.

- Não.

Olha de lado para a Carla e abana a cabeça como que a reprovar a minha ignorância sobre o significado de sonhar com carne ou dentes. A Carla observa, na expectativa, creio que tem conhecimentos mais vastos que eu nesta matéria. Eu reprimo um sorriso com dificuldade: tenho receio que o significado seja demasiado escabroso para me deixar ir na diversão (a dona Esmeralda tem o poder de me divertir todos os dias).

Ai não sabe...

- Não.

- Então... – e baixando de novo e ainda mais a voz – é morte. Morte, pronto, morte. Está a ver? Dentes é morte.

- Morte?! Não sabia. E carne?

- Carne.... é doença, filha – e larga-me o braço - admiro-me que não soubesse.

- Também eu mas não sabia, não (o sorriso tive de o morder). Acho que nunca sonhei com dentes e... com carne... sei lá, que tipo de carne vale?

Mas ela está preocupada e desta vez não me acha graça às subtilidades que me conhece de ginjeira e que costuma fingir reprovar muito, por isso tenho mesmo de me conter. Agitada olha de mim para a Carla e de novo para mim (não sei qual de nós as duas – se eu, se a Carla – está mais divertida).

- Pois... é que esta noite sonhei com as pernas de frango do almoço de ontem – e olha-nos por cima dos óculos, ora uma ora outra, a avaliar o impacto da gravidade da revelação.

A Carla encontra como sempre a forma rápida de desmontar a situação e, a rir: deixe lá dona Esmeralda, as pernas não tinham dentes, pois não?

- Não, não tinham... – porém, ela quer mais impacto em nós, mais ai jesus (jesus?!... de onde me saiu isto agora?), mais valha-me deus – mas é que foi só as pernas, está a ver filha (dirige-se a uma de nós mas não sabemos qual), nem asas nem nada, só as pernas dos frangos – continua a olhar-nos por cima dos óculos, o ar grave ainda não a abandonou.

A Carla abraça-a e dá-lhe uma palmadinha nas costas. Está rija, mulher, deixe lá as pernas dos frangos, elas não lhe fazem mal. 

- Aixa?!... (aixa significa "acha")

Acho – dissemos as duas num coro afinado. Tanto, que decerto surtiu efeito.

02/06/2015

Pequeno post em dois actos

Um

Continuo a tirar fotografias aos meus pés e ao teclado do computador, mais aos pés que ao teclado (a minha pequena colecção de sapatos registada assim). Focadas noutro lado qualquer, acompanham-se estas fotos de um ai que nervos já bastante batido por aqui. Não atino com as teclas do telemóvel, que é de teclas. Eu sou de dedos (digital). Mas depois lá escrevo a sms.

Fica-me a dúvida sobre que montante de pares de sapatos fará uma pequena colecção transformar-se numa grande.


Dois

No final do dia lancei-me na Feira do Livro e consegui comprar apenas quatro livros, um feito bestial (muitos foram os que lá deixei).

Por coincidência, está Vladimir Nabokov a fazer o prefácio de um dos quatro e o mesmo Vladimir a fazer o posfácio de outro. Nenhum dos dois é deste autor (adenda após comentário muito inteligente da Pseudo).

Quem descobrir que livros são aqueles dois, terá de escrever aqui um comentário identificando-os - autor, título e editora. Eu postarei a foto confirmadora e haverá presente com um laçarote de fazer inveja (em princípio). 

(talvez seja melhor dar prazo: o último dia da Feira à meia noite - é um bom prazo)

Dicas póstumas por causa do comentário da Luísa, com o qual estou de acordo: os livros têm ambos, sensivelmente, a espessura de um dedo e são da mesma editora.

Resultado do concurso (actualização 15.06.2015)

Concorrentes: 
Pseudo, Outro Ente, Redonda

Critério de pontuação: 
autores - 2 pontos, títulos dos livros - 2 pontos, editora - 2 pontos

Pseudo - acertou na editora (2 pontos)
Outro Ente - acertou nos dois autores e num dos títulos (3 pontos)
Redonda -  acertou nos dois autores, num dos títulos e na editora (5 pontos)

Ganha a Redonda, com direito a presente e laçarote. Obrigada aos concorrentes pela coragem em participar e à Redonda pela vitória! 

Os livros:


Montra de vestidos pendurados em manequins brancos e cappuccino é que nada

Ontem escrevi sete páginas à mão dentro do avião aos saltos (com esferográfica) a caminho de Lisboa. Para se ver perfeitamente que não estou a exagerar nem a fazer-me de aventureira sem medo, digo que me recusaram o cappuccino.

- Não servimos bebidas quentes com esta turbulência, deseja mais alguma coisa?

A tarde tinha-se vestido de branco e enfeitava-se da chuva esborrachada pelo lado de fora da janela do comboio que me leva ao aeroporto, cortamos o véu líquido na cápsula aquecida. As gotas de chuva já muita gente escreveu que batem nas vidraças e descem até encontrar o obstáculo vedante que as recolhe numa linha enquanto aguentam a tensão de superfície, a mim parecem-me sempre tristes por serem cegas, porém carregadas de uma poesia (que nem ler sei, quanto mais escrever). Saio na estação de Amsterdam Bijlmer Arena, por causa das obras no caminho de ferro que não permitem às composições continuar a colher gotas de chuva a oeste dali e pergunto onde se apanha o autocarro que completa o percurso.

Aos meus pés o saco de viagem que cabe debaixo do banco à minha frente. Também iria aos saltos não fosse estar retido no seu casulo que sobrevoa a França de certeza. Leva dentro o vestido que me chamou da montra de uma das lojas no aeroporto, atacando-me de repente o olho esquerdo (cappuccino é que nada).

Assim que entro no autocarro número trezentos, dois minutos depois do parágrafo da poesia ali em cima, bate-me na cara o cheiro a óleo de fritar imensas coisas que se pode facilmente encontrar a menos de quinhentos metros de qualquer bom restaurante MacDonalds. Um nojo este cheiro e sento-me a observar novas gotas de chuva, cada vez mais a poente.

Aqui por cima da França, gosto muito de dizer da França, os saltos da turbulência continuam agora com orientações laterais terríveis, não me lembro de uma endurance assim e estou quase a entregar-me ao medo, mas continuo a escrever.

Quando o autocarro finalmente abre as portas na praça central do aeroporto, liberto-me do cheiro do óleo cansado de fritar muito e saio para o fresco do fim da tarde. Sinto-me sempre feliz a viajar sozinha, de forma que acredito ser uma companhia extraordinária, e entro satisfeita na combinação de portas giratórias gigantescas que dão acesso ao edifício. No corredor que atravesso a caminho do terminal três, passa por mim a uma velocidade considerável a montra de vestidos pendurados em manequins brancos como a tarde lá fora. Um dos vestidos finta-me, ataca-me pelo olho esquerdo, ei tu aí. Travo, derrapo, viro-me para o olhar de frente e ligo à minha filha.

- Amor, já encomendaste o teu vestido?

Vou encomendar agora, mãe, aquele da internet, lembras-te, foi o que me disse a voz dela, conformada, a dois mil quilómetros de mim. 

- Não encomendes, acabo de o encontrar.

(temos um baile de finalistas e o décimo oitavo aniversário acumulados na mesma agenda para este mês e para os quais já se percorreram quilómetros quadrados de lojas lisboetas, eu envelheci bastante dentro de gabinetes de provas de vestidos muito bonitos, mas este não, mãe, muitas vezes, este não, mãe)