a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

10/03/2015

Muito depois da morte de Ricardo Reis

Por vezes as coisas que leio trazem semente. Principalmente na primavera, como agora, entram na terra que me habita, aconchegam-se comigo no sono, germinam e dão nisto.


Saí do trabalho e não precisei de meter a culpa na mala, ela já saltou lá para dentro, vamos para casa juntas. Conhece-me de todas as formas, acompanha-me as variações em crista, pontos altos de onde caí com vertigens e baixos dos quais subimos em lágrimas.

Por isso decidi, antes de ir para casa, passar no futuro à tua procura. A fintar o tempo para que não fuja, dobrei o espaço para saltar de frente, pesado, tão pesado. No entanto, sei bem onde te encontrar.

Cheguei já a noite vestira o dia de lua cheia de fogo. Não se vê ninguém na estrada que segue deitada na margem do rio e começo a caminhar. Oiço um borbulhar que vem da fina ondulação da superfície da água, brinca com a parede da margem, sussurra-me palavras repetidas que não distingo, onde estás? Ao fundo, o contorno de um banco de madeira virado ao rio.

Não estás. Está só esta pedra branca entre as ervas do chão. Baixo-me, apanho-a. A pedra é leve, muito leve, não é pedra. Desembrulho-a e, à luz do luar púrpura, leio assim.

Dizes que alta a lua quê
- Que brilha tanto toda
Dizes, em cada lago e assim
Não sabes de poesia outra

Mas te digo eu nada,
nem meia brilha, ela ri
não é de tu mas de eu sim
de tanto subir que depois caí

Dizes que alta a lua quê
- Digo que alta brilha sim
E eu que vermelha mas não de ti
Eu que do sangue que sai de mim

Levantei os olhos do papel cheio de vincos e olhei em frente. Sentada no banco de madeira está afinal alguém. Tem a minha cara nas mãos. Alguém que curva os meus ombros, que usa o meu cabelo em branco, alguém que me deixa a mim, daqui, ver o teu bilhete purgar-lhe o coração. Mas só a parte que a culpa não comeu.


Acordei de um salto. Depois levantei-me e fui escrever-te esta carta, antes que o tempo fuja e nunca me traga o teu perdão. 

(sim, aquele pseudo-poema mal amanhado inspira-se em Ricardo Reis, talvez fosse de aproveitar e pedir perdão por isso também)

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