a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/01/2015

Com o coração na boca

Nos intervalos que se abrem no fluir líquido de um dia normal, cai, por vezes, uma estrela. Mas também moscas, vamos verificar.

Estou junto à caixa multibanco que alguém gostou de enfiar num canto escuro e feio de uma garagem, não há garagens bonitas nem almoços de graça, e tenho de esperar pela minha vez, detesto levantar dinheiro, isso e abastecer o carro mas paciência. Quando vejo o terminal inteirinho à minha frente, livre, nem precisava de escrever livre, avanço com o cartão multibanco que me vive na carteira há anos e estendo-o em direcção à ranhura onde tenho de o meter. Neste intervalo em que o cartão está em trânsito, sinto uma coisa dura espetar-me o lombo do lado direito a caminho das costas, acompanhada de uma voz que diz a vida ou o dinheiro e se não foi isto foi uma coisa assim ou absolutamente assim.

No semáforo são oito horas e vinte da manhã, estão pouquíssimos graus Celsius na rua, eu parada dentro do carro, e na minha cabeça giram as tarefas em contínuo, num frenesim que não quero quebrar, não me posso esquecer, estou mesmo a chegar ao trabalho, aparecendo o verde é um instante e a antena dois toca a Moonlight Sonata que já vai na parte final, naquela parte final, a que me faz levantar do banco e dar com a cabeça nas nuvens, depois é um caso sério para aterrar, tarefas venham cá. Está um nevoeiro envolvente que àquela hora já se despede e começa a recolher devagar ao rio, não muito longe dali. E sinto-me, de repente, nesta curteza de tempo, imensamente feliz. Ter existido um Beethoven, uma estrela que encanta assim, é o mesmo que dizer que podemos ser imortais, pois podemos.

Aquela porcaria assustou-me imenso e à velocidade da luz percebi que estava a ser assaltada e à velocidade do som dei um grito descontrolado e a outra velocidade mais lenta, ainda que muito elegante, um salto para trás.

É que sorri, disso estou certa, fiquei a saborear a sequência das notas, a subir a subir, mais e mais depressa, numa aceleração de tirar o ar a uma pessoa que está prestes a entrar no trabalho, não é muito certo mas pode acontecer, que tonturas de tanta beleza, porque não oiço eu isto a toda a hora e cai o verde, caramba.

E o que temos aqui? Temos a borrega da Cremilde, que desata a rir, acha giro isto, é ela, a songa monga, colega por quem eu nunca consegui nem mesmo nos dias bons, que me despertasse no coração, e o meu coração não é mau, uma leve gota de simpatia, nada. E agora acha bem espetar-me o dedo nos ossos, quer brincar aos ladrões. Ó sua estrupícia com verrugas, assustaste-me!! mas isto eu só pensei, mordi os beiços e dirigi-me ao pobre do filho, ela leva o filho para assistir às suas démarches inteligentes consumadas nas caixas multibanco, olha cremildinho, diz à tua mãe que isto não tem graça nenhuma, ouviste? o pobre está envergonhado, não é para menos, tem mais um palmo de altura que a estronça, que está um bocado acabada, um bocado não, muito, acabada seria favor.


E agora? Podemos ser imortais ou dou um chapadão à Cremilde que lhe desorganiza as verrugas mais próximas em vez de manter toda torcida a mão dentro do bolso, o que não dá jeito nenhum? É que fiquei com o coração na boca.

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