a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/12/2014

De barriga cheia

Atei o avental atrás das costas. Arregacei as mangas, peguei na sapateira que já vem cozida, cheirei-a, marisco cheira-se, eu cheiro tudo.

Arranquei-lhe as patas uma a uma, situação que não apreciei levar a cabo por aí além, felizmente não são dezenas. Depois abri-lhe a barriga, retirei-lhe o interior. Na internet aprendi a fazer o recheio, mas fiz outro; não tenho metade dos ingredientes e agora já não há tempo de ir comprar os pickles nem o molho inglês nem a mostarda nem o ketchup nem molas para a roupa nem pasta de dentes.

Misturei o que havia, o ovo cozido também, que gosto me dá cortar tudo pequenino em vez de pôr na picadora e fazer uma barulheira que assusta os pássaros, detesto barulheiras e gosto tanto de pássaros.

Depois, sapateira de barriga cheia outra vez, lavo as mãos e limpo-as mal, está na hora dos telefonemas às irmãs que não são poucas, pego no telefone, sento-me. O meu dedo escorrega na tecla grande que pesquisa a lista telefónica da minha vida e em vez de ligar à minha irmã Ana, ligo à vizinha Ana do sétimo andar que também me deseja um óptimo ano de dois mil e quinze e fica muito sensibilizada por me ter lembrado dela. Com muitas irmãs ainda para desejar coisas boas para o ano que está aí a rebentar, limpo melhor as mãos, esfrego-as bem no avental que isto tem de ficar feito hoje. Ficou.

O fogo na lareira está bem atiçado contra os graus lá fora, embora poucos, muito menos que as irmãs, se calhar está lá um grau sozinho, coitadinho, que não lhe telefono, e é que isto não tem graça nenhuma, nem isto nem ontem não ter avistado veado nenhum quando cá cheguei à serra, as horas iam altas na noite, o ano está a chegar ao fim, a sapateira de barriga cheia e eu ainda de avental.

27/12/2014

Chá verde

Acordei andava a madrugada pelas quatro horas e a lua não sei, da cama não a vejo, mas por acaso gostava de saber, que bem haviam de ficar aqui duas ou três palavras sobre o luar, paciência.

Mantenho os olhos cerrados numa precaução aprendida em noites assim, não poucas, mas o sono conseguiu fugir. Sem luar e sem sono, agarro-me ao vento. A janela aberta sobre a serra deixa entrar o som harmonioso desta serenata às folhas das árvores que se agitam trémulas de alegria, poesia assim ilumina qualquer um, mesmo sem lua. Ao longe oiço uma coruja mas o que eu gostava era de dormir. E de voltar a encontrar o veado. Quase o atropelava o mês passado, mês nada bom para atropelar veados, este surgiu a seguir a uma curva na estrada, surpreendido pelo carro teve uma ideia o belo macho, pôs-se a fazer corridas, mas que bicho tão grande, eram duas da manhã e ele também sem sono. Ganhou, meteu-se entre duas árvores onde a trabalhada estrutura que lhe ornamentava a cabeça conseguiu caber e desapareceu. As maçãs tinham assado bem, meti-lhes canela e vinho do porto e as sobras do natal estão quase consumidas, está tudo arrumado e limpo. Senti o sabor da chanfana do jantar, admira-me ter gostado tanto daquilo. Daqui a trinta e nove anos farei apenas o que me apetecer, ouviste? Teremos asas nas costas e levar-te-ei ao núcleo da Terra para te mostrar de que cor é este amor que plantaste na minha existência e me está a queimar os olhos.

Abro-os. O sol já vai alto, o céu vestiu-se de azul vibrante, a janela ainda aberta e o estômago a dar horas. Dez e meia e o padeiro passa daqui a nada. Está tudo por fazer. Queres um café ou tomamos chá verde?

25/12/2014

A noite de natal

- Consegue levar?

O saco onde ela tinha metido as couves que eu acabara de comprar para o bacalhau da consoada, estava crescido: começava no chão onde ela o pousara e terminava à altura das minhas mãos que já estão a sair dos bolsos.

- Este não tem pegas, mas não tenho outro deste tamanho, consegue? - a rapariga da mercearia do centro comercial duvidava das minhas capacidades de transporte de sacos de couves crescidos e sem pegas.

Agarrei-o como se fosses tu nos meus braços para comigo dançares uma valsa, o compasso terciário não é difícil nem com um monte de couves assim, fomos juntos, o saco a levar-me pelo corredor das lojas, que bem dançamos nós, ainda é um pedaço até à porta, vamos lá, e eis que o vejo sentado no banco, pouso o meu companheiro de valsa, a música espera um bocado.

O rapaz que passeia os cães está sozinho no banco de madeira junto à loja de fotografia, passa das sete da tarde e parece-me triste.

- Estás sozinho.

- Estou cansado - corrigiu, ao cumprimentar-me - hoje já passeei quinze, levantei-me às seis da manhã - diz-me num sorriso lento.

De cada vez que o encontro, o Renato faz-me o relatório do negócio que também vai crescido, quinze cães?!, quinze, sim, ele orgulhoso conta-me o seu dia e o grande saco das couves, que não são tantas mas parecem, vai ouvindo a conversa, espera que retomemos a valsa.

- E o teu natal, como vai ser? - a pergunta fugiu-me: o Renato não tem família, o negócio de passear cães salva-o sabe deus de quê e pinta-lhe sorrisos no rosto quando descreve os seus amigos de quatro patas.

- Talvez com o meu tio.

- Talvez? E se não for com o teu tio?

- Fico fechado no quarto - responde com um encolher de ombros que lhe assina a resignação.

E eu agora quero retomar a valsa contigo, levar este amontoado incrível de couves que sei serem demais, vão sobrar, sobram sempre, levá-las para o calor do lar, assistir ao outro amontoado, também incrível, de presentes que toda a família vai depositar junto ao pinheiro de natal, os jingle bells a tocar e rostos vermelhos, felizes, em toda a gente.


- Consegue levar?

As couves consigo. O que não consegui foi deixá-lo passar a noite de natal fechado no quarto.

Onde comem dezoito comeram dezanove. E a nossa noite de natal teve um sorriso novo.

20/12/2014

Mais perto

Comecei por varrer as folhas secas que ficaram no terraço esquecidas pelo vento. O sol está cá e está quieto embora seja este um dezembro como os outros, queres ver, sacudo o tapete da entrada da cozinha e ontem à noite o termómetro não deu mais de três graus bem medidos, três graus que agora ao sol se somam, se multiplicam, e depois sentei-me no primeiro degrau da escada de pedra.

O verão parece que ainda não saiu, ficou a fazer horas extra neste terraço onde me deitei a escrever-te novidades que supus serem-no para ti. Tudo verde então e tudo verde agora, se não olharmos ao céu que tem os tons de branco pintados, fiapos de nuvens vestidas de frio contra o azul magnífico. Tons de branco talvez consigas imaginar, eu descrever não sei melhor. Vi um pássaro preto com a cauda vermelha, tem o tamanho de um pardal e fiquei a olhar para ele saltando de poiso em poiso, poleiros escolhidos da malha replicada na vedação que delimita o terreno até ao fim. Faz perfeita pontaria entre as linhas metálicas que lhe ficam quase justas ao pequeno corpo, um trapezista. Imaginei-o a errar o alvo, bater com a cabeça nas linhas da vedação e ficar tonto, sei lá, deixar-se ir em queda livre até recuperar o norte, se pudesse. Mas ele não errou o alvo, não fica norte para recuperar, e isto o bem que me faz.

Isto e o ciclo da roupa, coisas que não conto a ninguém. Sinto a tua falta e por isso é que me saem estas linhas tortas que escrevo enquanto te ponho aqui a ouvir-me, se calhar estou a maçar-te, a roupa ainda não secou. Eu sei que me entendes, é o que me diz esse teu sorriso sábio, a roupa e o seu ciclo de lavagem é assunto sagrado porque me firma as raízes e de repente pertenço aqui para sempre, deixo cá histórias que um dia alguém quererá contar, o que achavas tu? Liberta-se este aroma ao sol, essência lavada que acena, cúmplice, ao chilrear dos pássaros e combina tão bem com o borbulhar da água que leva pressa para chegar ao vale, o curso mais grosso, claro, e por isso ouve-se daqui, acreditas?

Comecei por varrer as folhas secas que ficaram no terraço esquecidas pelo vento mas o verão parece que ainda não saiu. Ou és tu que estás mais perto?

18/12/2014

Chocolate quente

Normalmente não preciso. Mas de vez em quando, talvez me leve distraída o dia ou sou atravessada por neutrinos dos maus, afogo-me. É um buraco.

Chega-se a mim, e eu, donde vieste buraco?, interrompe-me o estado completo, passo ao incompleto, sou engolida, é isto, olha, precisava mesmo agora que me dissesses assim, com cara séria, olhos nos meus, os teus cheios de luz, eu acho que isso é luz mas um poeta é que diria o que é, não te preocupes.

- Não te preocupes.

E eu obedecia enquanto bebia um pedaço dessa tua luz que se calhar é chocolate, também bebo chocolate, mas um poeta é que sabe. Inspirava fundo, então, voltava a completar-me e depois tu podias ir embora outra vez.

No interstício – aos séculos que não escrevia esta palavra! – no interstício de tempo que medeia, fico-me afogada no buraco que me engoliu e enfio nos ouvidos uma música das que, com um jogo de roldanas bem orientado, me puxará a alma de cimento para cima, ali à altura da bandeira lusa do parque, aquela que acena aos satélites, bem gostava de saber a área de pano que ali está e até havia de sorrir, mesmo que em tons de amarelo.

Lembro-me da miúda que se enganou na coreografia de sábado, no espectáculo de natal que fizemos. Chorou o resto do tempo, dançou em lágrimas, soluçou até depois de tudo acabar e nos enfiarmos na chuva da tarde.

- Que idade tens, querida?

- Onze – arrancou ao pranto.

- Não te preocupes – passei-lhe a mão pelo cabelo ainda montado em carrapito - só não se engana quem não faz nada. Não viste que eu também me enganei?

Levou abraços de cada uma de nós, consolo foi o melhor que pudemos, melhor, mas ineficaz se mostrou, ela não se perdoou o engano e o tempo não se rebobina, ou tu isso consegues?

- Não te preocupes – precisava de lhe passar a mão outra vez pelo cabelo, mesmo que o carrapito já lá não esteja, nem a fitinha de cetim rosa, e assim enchia este buraco, saíamos as duas dele e a chuva da tarde continuaria a cair.

Mas agora, engolida assim, longe da tua luz que deve ser chocolate quente, a música que meti nos ouvidos não funciona, estragou-se com os neutrinos maus, a minha alma de cimento afunda-se e eu precisava.

- Não te preocupes.

15/12/2014

Lindas lindas

Tem dias em que me farto de mim. Noites não, nessas ponho-me a dormir e depois esqueço. Mas dias. Farto-me da minha voz e os espelhos, ai jesus, evito o que posso.

No salão onde se desenrolam muito bem as aulas de dança, há uma parede de espelhos que contribui, evidentemente, para este aspecto. É cabisbaixa que me ponho então, fartinha que estou, uma vez que no chão não os há.

- Susana, tens de olhar para o público e não para o chão, assim, estás a ver – oiço a voz de comando da professora.

Olhar para o público já se vê que é brincadeira, pois público não há mais que eu própria ali reflectida e as outras colegas, não muitas mas boas, pelo menos eu acho que tirando uma elas são boas.

Era sem espelhos e haviam de ver umas determinadas coisas como deve ser. Mas as modas são as modas, estas trouxeram espelhos para os ginásios, e eu já basta não ter um aifoune, os aifounes são muito giros mas põem distância entre as pessoas, põem põem, e eu do que gosto é de pessoas.

Quando estou no aeroporto à espera de alguém, lembrei-me agora, mesmo ali à boca das chegadas, observo as gentes que descem a rampa pouco inclinada mas ainda assim rampa (aborrece-me não saber de onde vêm e sou capaz um dia de perguntar, olhe, se faz favor, era para saber de onde vem) e gosto daquilo, suspeito que fico com uma cara qualquer, felizmente espelhos não os há, só o anúncio do Martini que cobre todo este desembocar das chegadas, vai de uma ponta à outra do aeroporto, estou desconfiada que praticamente entra no metropolitano, coisa mesmo à grande sim senhor e que renovaram recentemente, o outro estava ali ainda eu não me fartava de nada, vamos lá ver quantos fica agora este e o parágrafo está tão grande, fecha-se já.

Observo então os abraços, os sorrisos, os abraços, os sorrisos (dizem que as repetições trazem tranquilidade e eu tomo-as agora para ver se me descanso de mim), observo um grande grupo que enche toda a largura do fim da boca das chegadas, malas a ajudar, caros a escorregar, não era para rimar, é favor desculpar, são muitos e apresentam pessoas a pessoas, beijinhos beijinhos, muito prazer, igualmente, apertos de mão, como está, sorrisos e depois vem uma lá atrás mal disposta, resmunga que estão a ocupar e diz olhe desculpe, mas devia dizer olhe deixe passar, esta não tem cá ninguém, nem abraços nem beijinhos, sopra o ar, revira os olhos.

E eu ponho os meus nas costas dela, vejo-a ir para a fila dos táxis, coitada vai para a fila dos táxis, e quando devolvo a cara à observação das pessoas aparece o Manuel, olha está mais gordinho, mas não digo, ele vem a sorrir, vens de onde Manuel, de Bruxelas, ah de Bruxelas, diz-me que eu mais nova, mais nova eu mas farta farta, estive com as tuas filhas no outro dia, sabias, sabia, estão lindas, pois estão, lindas lindas.

E eu com o pensamento nas lindas que são mesmo mesmo as minhas filhas, rio-me com o Manuel e do meu riso por acaso ainda não me fartei.

11/12/2014

Primeiros acordes

Dia.

Subimos lado a lado a alameda dos ciprestes a esta hora inundada de sol. Ela estremece de um frio que eu sei vir-lhe mais de uma memória com muitos espinhos que deste cortejo fúnebre, vejo-o diluído em lágrimas que lhe trazem mais luz aos olhos verdes. Ao caminhar, imprimimos no alcatrão novo o rasto das nossas sombras, que são irmãs. Escolhi fazer este trajecto lento ao seu lado, mantenho os olhos secos e conto-lhe uma história enquanto, por cima de nós, os aviões são cuspidos para o céu.

- Ainda não te contei esta história. Eu tinha catorze anos e gostava muito de uma música de que conhecia o título. Entrei com o pai numa loja de discos onde ele ia muito, comprava-os lá.

- Uma discoteca.

- Exacto, uma discoteca. E pedi ao senhor da loja que pusesse a tocar a música para a mostrar ao pai. Era o “More Than This” dos Roxy Music, conheces?

- Não, acho que não…

- É natural, se eu tinha catorze tu terias sete, brincavas com as Barbies… Bem, aos primeiros acordes, o pai disse logo que o comprava, pareceu-me que adorou a música e eu fiquei toda contente. Ouvi milhares de vezes aquele vinil.

Fizemos o resto do caminho na companhia das suas lágrimas silenciosas, nascente daquela memória antiga que este contexto fúnebre desenterra. Eu queria tirar do coração da minha irmã a dor que vive tão fundo nela.

Quando saímos do crematório, a alameda dos ciprestes continuava inundada de sol e os aviões seguiam cuspidos ao céu.

Noite.

Saí da reunião e fiz-me à estrada para chegar a horas ao jantar no bar da praia. A luz no painel de instrumentos insiste na ideia de meter combustível, pisca com energia cadente e eu faço contas aos quilómetros a ver se posso abastecer no regresso. Posso. O telemóvel também dá alarme, está quase sem bateria e tenho ainda dois telefonemas a fazer pelo caminho. Faço. Lembro-me entretanto que não há pão em casa nem tempo para o comprar. Paciência. Há bananas.

Chego com dez minutos de atraso, a Catarina já tem uma imperial e amendoins à sua frente. A praia nas noites frias de inverno também existe, mas o bar está quase deserto.

- Caty, importavas-te de não parecer sempre teres vinte e oito anos, importavas?

Ela ri-se e abraçamo-nos. Não nos vemos há um ano e estes jantares são praticamente sagrados.

Duas imperiais e dois hamburgueres depois, nada gourmet e tudo à grande, não vamos ao engano, despedimo-nos com desejos de boas festas e no regresso a casa parei na estação de serviço. Ao retirar a agulheta para abastecer, o aviso esganiçado no altifalante cliente da bomba seis, o serviço está em pré-pagamento, saiu automático e eu dei um grande salto, não gosto de dar grandes saltos. O pré-pagamento inclui tentativa de me venderem dois chocolates Toblerone maiores que, deixa ver, maiores que o meu úmero e ainda coisinhas estranhas para fazer pega monstros por dois euros e noventa e nove.

- Produto nacional, muito bom, quer?

- Não. Quero pão, tem pão?


No resto do caminho pus a tocar o CD dos Roxy Music, descendente do vinil dos meus catorze anos, que trago no carro. Tocou em repeat os acordes que pedi ao pai para ouvir naquela tarde em que tu brincavas com as Barbies e nenhuma de nós sabia ainda o que era morrer.

08/12/2014

Tempo

Cheguei-me ao rio. A lua reflecte-se ali a meio caminho entre esta margem e aquela, mostrando-me um carreiro de gotas todas juntas e eu escolhi uma, acolhi-a na mão, bebi-a. Sabe um nadinha a mar.

Começando a prosa com tanta poesia até parece que, em ganhando balanço, vai derreter um ou outro coração mais adiante e mais natalício ou mesmo distraído. Pois assim não será, que esta prosa serve-se azeda.

Hoje tinha pensado morrer. Para isso, fui comer uma refeição do tipo porcaria servida em recipientes de cartão armado ou de plástico em cama de tabuleiro revestido com papel total e visualmente poluído com tretas que não valem nada e ainda a factura debaixo do copo da bebida açucarada, das piores.

Sentei-me na esplanada dando as costas ao sol, a carregar, a ver se vem a mim um resto de energia e eu pego.

Uma mulher muito gorda fuma sentada no meu campo de visão e enternece-se com os pombos, anda aqui uma legião deles a debicar nos restos deixados nos tabuleiros abandonados. Eu não me enterneço com nada, como esta porcaria em cima dos materiais perecíveis depois de mim e da factura, que é sem contribuinte, e acaba de voar o celofane onde vinha metida a palhinha.

À minha frente está a revista do jornal de sábado que trouxe comigo e que me quer dar ideias para presentes de natal, perfumes, meias de lã, mas eu não quero estas, as minhas é que são boas ideias.

Entretanto, com o sol a carregar-me nas costas devo ter enfim pegado, reparo que neste cenário nem os olhos mais benevolentes podem registar uma centelha de beleza e uma batata frita desolada voa por cima da minha cabeça e vai embater na mulher que fuma e se enternece muito, olha que lindos, vê-se mesmo que gosta dos pombos. Eu era as gotas de água em carreiro a correr ao luar junto ao rio, mas doçuras não são para hoje.

Acabei com aquilo, o meu lixo levei-o para fora do alcance do vento e recolhi a casa com o saco do jornal na mão.

Pelo caminho percebi que afinal não podia morrer hoje, havia ainda a árvore de natal para fazer e uma pilha de roupa a tratar.

Fica para amanhã, então. O tempo que me vou subtrair corto-o em pedaços: anos para a família, meses para os amigos e semanas para o porteiro lá da empresa, que fica sozinho na noite mágica a vigiar a entrada de ninguém. Embrulho todos em papel muito bonito, ponho um laço vermelho com o brilho que lembra o luar no rio e ofereço-os pelo natal, isso sim.

Cá perfumes e meias de lã. Da falta destes não se ouve alguém queixar.

Já da falta de tempo, sim. 

Muito.

Mas pouco espero que demore a reflexão do amigo Xilre. Muito grata estou eu e, não tarda nada, saudosa.

07/12/2014

Maria Lúcia

Não sei se era natal naquela noite, sei que estava frio.

Maria Lúcia, viúva conformada com a sombra de um amor que o foi pleno, deita-se normalmente tarde. 

Mulher devota, crente num deus bom, não concebe naturalmente intenções outras que não pares das suas. Esquece-se de cuidar de males, muito menos esperar que lhe escorreguem para dentro da sua existência já longa mas frágil, contada em mais de sete décadas.

Deitava-se tarde à quarta feira e à sexta, ao domingo e em todos os dias.

A única luz que deixa brilhar nos serões solitários do seu apartamento antigo, num rés-do-chão de Lisboa, é o quadrado do ecrã de televisão. Dali toma, transferido, o consolo levado com o marido, o ecrã luminoso conta-lhe as histórias que lhe embalam os dias e desconfio que também os sonhos.

Na sala, os móveis cheiram ao cansaço de uma madeira escura, indefinida, colhida em florestas antigas onde imaginei ter havido duendes e elfas a tecerem os séculos, hoje decerto cruzadas por auto-estradas vazias. Os napperons que lhe saíram das mãos em décadas passadas, quando a vista ainda podia, filha, estão dispostos pelas superfícies nuas, que nudez é assunto para se ocultar em presença da Nossa Senhora, ali, de vigia na cristaleira.

As pernas cobre-as com a manta velha, que o aquecedor gasta muito. E é assim que, naquela noite em que não sei se era natal mas sei que estava frio, parece que ouve um barulho abafado.

Põe-se à escuta subtraindo mentalmente as vozes do filme que corre no ecrã e confirma: uma restolhada lhe chega aos ouvidos, esses não a enganam.

Afasta a manta, levanta-se da poltrona e, sem acender outra luz, sai da sala e entra no corredor de acesso ao quarto, parece que o barulho é dali.

- Não teve medo, Maria Lúcia?

- Medo de quê, filha? Não tive medo, mas quis ver o que era.

Agachado entre a parede branca e os pés da cama feita da madeira retirada aos mesmos duendes e elfas, estava um homem. Maria Lúcia viu-lhe os olhos brilhar à luz da televisão que fez com ela o corredor e ali ficou a secundá-la.

- O que está o senhor aí a fazer?

- Nem então teve medo?! – eu estava admirada.

- Não, filha, ele é que parecia assustado.

Disse-lhe para se levantar e pegou-lhe nas mãos, estavam frias.

- Tem as mãos frias. Eu sopa não tenho, mas venha até à cozinha e faço-lhe um café, para aquecer.

Ele obedeceu. Era um homem novo, podia ser meu neto, filha. E estava com frio.

O homem bebeu o café e agradeceu, palavras ouviu-lhe poucas. Ela acompanhou-o à porta e disse-lhe que da próxima vez não saltasse pela janela, que se podia magoar, tocava a campainha e ela oferecia-lhe sopa, se tivesse. Se não, havia de ser outro café.

Hoje de manhã, enquanto metia a roupa na máquina para lavar, o sol que me entrava pela janela bateu-me nas costas e eu lembrei-me dela. Por uma coincidência, por ser quase natal ou por haver duendes e elfas nestas linhas, Maria Lúcia faria hoje anos se fosse viva. Da história mudei um bocadinho o seu nome e não mudei mais nada.

04/12/2014

Gargalhadas suadas

Fala-se imenso do amor. E fala-se das coisas do facebook, de música má e de sushi, pagam-se contas pela internet e vêem-se montras nos centros comerciais aos domingos. E moda, fala-se da moda, desdenham-se os políticos, usa-se muito o desdém, vendo bem combina com os metais alaranjados que são a tendência deste ano em relojoaria, isso já eu percebi. Também se mastigam almoços de boca aberta com a cabeça inclinada ao tecto a olhar as notícias do jornal da uma na televisão dos restaurantes. Ou então, isto vê-se muito, tecla-se no aparelho electrónico que nos liga uns aos outros.

Ou desliga uns dos outros. Mas amor, era aqui que queríamos ir.

Fala-se do amor. Até se faz publicidade com o amor. É normal. Reduzir o amor a um par de gargalhadas soadas em muitos lados, dentro de carros parados em semáforos, nas cozinhas das casas das pessoas ou nas lojas, soam do outro lado da emissora rádio por causa de um reclame imbecil sobre uma bela loira que afinal era uma cerveja. Reduções baratas de coisas grandes porque a loira era para ser o amor de alguém mas não passou de uma fermentação bem maltada ou assim para se beber bem fresca. Qual amor?

Não é preciso falar do amor. Não falemos do amor. É preciso é fazer o amor.

Não merece a pena neste ponto incendiar entusiasmos e abrir expectativas, que eu não tenho arte para me esticar por terrenos delicados, há muitas maneiras de se cozinhar bacalhau e o amor português também joga nesse time.

Hoje. Na cantina lá da empresa onde todos os dias me encontram normalmente dentro da minha bata cujo corte não conheceu alfaiate, assim como muitos edifícios – quase todos – em Lisboa não sabem o que é um arquitecto, adiante que esta mágoa carregá-la-ei para a cova - abandonei a linha de alimentos onde me servi de vários, e sentei-me à mesa onde pousei o meu tabuleiro. À minha frente a Carla já vai adiantada mas o seu tabuleiro exibe ainda inteiro um dióspiro vermelhinho de maduro, coisa tão rica que até me veio um bocado de água à boca. No meu tabuleiro uma maçã assada raquítica a envergonhar-se, mas que amor.

- Ó dona Esmeralda, onde estão os dióspiros? Eu só encontrei esta maçã assada resmenga e salada de frutas, que é coisa que não como.

- Res… quê? – a dona Esmeralda aproxima-se da mesa a esfregar as mãos no avental.

- Resmenga, dona Esmeralda, inventei a palavra e por acaso faz muito sucesso.

Não passou um minuto e eu tinha no meu tabuleiro um dióspiro nascido de uma prateleira escondida lá das coisas da dona Esmeralda. Ora isto é amor. No fim houve que lavar as mãos e a boca, mas isso foi o menos, que me regalei à grande.

Esta manhã, eu ainda na cama. Abre-se a porta do quarto e entra uma chávena de café a fumegar e – já sabemos esta parte – a aromatizar o espaço como mais nada o pode fazer. Agarrada à alça da chávena vem a minha filha mais velha a sorrir, é mesmo linda esta miúda, bom dia, mãe.

Ora isto é coisa que eu não ensinei à petiza quando era petiza, portanto só pode ser o quê? Deu-me um beijo na testa e saiu para a escola, até logo. Amor.


E antes que pensamentos cruéis sobre uma mãe que fica na cama quando as pobres crianças saem de casa para a escola em vez de as conduzir de carro, coitadinhas, vão a pé ou de autocarro, antes que pensamentos assim invadam cabeças, vamos ouvir outra opinião:


(gargalhadas soadas adorei, são muito boas, mas se forem suadas serão ainda melhores, era reflectirmos nisto se faz favor, que é quase natal)

01/12/2014

Quietinho no prato

Os rapazes da Coreia do Norte, não sei, talvez lendo “Dentro do Segredo” do José Luís Peixoto, mas os da Coreia do Sul, se recebem alguém que vem, por exemplo, da Europa, é mostrar o que valem em comidinha fresca. Peixe.

Sabendo já nós de sobejo que os japoneses nem sempre chegam lume ao pescado, preferindo enrolá-lo em pequenas obras de arte coloridas e de meter na boca mas só depois do equilibrismo nos pauzinhos e é para quem pode, e o comem, ao pescado, mesmo cru, estaremos certamente preparados para a eventualidade de os rapazes da Coreia do Sul enveredarem por caminho não muito díspar. 

Erik e dois colegas, enviados dos Países Baixos a uma conferência ali organizada, constituíram alvo da espontaneidade risonha dos orientais deste país do sul e viram-se acomodados em restaurante bem afamado, peixe cru é o petisco que está para vir, muito fresco muito fresco, tão fresco tão fresco que na verdade, vendo bem as coisas, ainda não morreu. E se não morreu - esta é fácil - está vivo.

Ora, quando o apetite não é desmesurado e os bichinhos esperneiam alegremente no prato, num prato sem gradeamento nenhum, era ou não era de lhes segredar discretamente: fujam, fujam!?

- Então como fizeste? Comeste?!?

Erik não comeu, um dos colegas ficou ligeiramente esverdeado na dificuldade: desiludir a generosidade dos sul coreanos que riam e acenavam muito em incentivos à degustação, contra a impossibilidade prática de meter um bocado de polvo vivo na boca, os polvos vêm cheios de pernas, ou serão braços?, e trazem ventosas de origem, aquilo é capaz de se querer meter no nariz se der uma chicotada no ar pelo caminho, nunca se sabe, e depois para descolar?


Eu cá penso que se torna bastante conveniente, ao almoço, ter tudo quietinho no prato.