a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

07/11/2014

Cabeçadas no vidro

A minha secretária anda sendo visitada por formigas vivas.

A taça dos rebuçados que compro porque me trazem a cor que os objectos do trabalho carecem ou porque gosto de ver os meus colegas relativamente comprometidos a virem tirar um rebuçado mesmo que não queiram nada comigo ou então trouxe a ideia de uma reminiscência da infância, até é bem capaz de ser isto, mas a taça. É alta e elas não a viram ainda, as formigas, o que me traz a contar os dias, são experiências.

O que há de estranho nisto não é eu vir aqui escrever uma coisa que não tem interesse nenhum.

Se contasse que uma vez vi uma abelha entrar-me pela janela da cozinha, voar para debaixo da mesa, fazer-me ajoelhar porque lhe quis seguir a rota de voo (não podia dizer que lhe seguia os passos, isso sei eu) e acabar vendo-a desaparecer no alvéolo por onde tinha entrado um grande parafuso que segura o tampo a uma perna, acho eu, e depois voltar a sair, o que seria das pessoas? Talvez quisessem mais, mas também podem ficar já nesta paragem. 

Ora a abelha sai do casulo, estando lá dentro não a vejo, e voa janela fora, desaparece.

Levanto-me e fico ali um pedaço a observar as coisas, olho em volta. No chão, por baixo do local onde se aloja o parafuso há muitos anos, há um material amarelado que parece esponja desfeita. Apanho-o e vejo logo quem tratou de fazer aquele serviço.

E quem tratou de fazer aquele serviço está a entrar-me pela janela aberta uma vez mais e a ir direitinha sem instruções de voo fazer-me ajoelhar de novo e outra vez meter-se dentro do cilindro escuro onde jaz a cabeça do parafuso referido, não sei se estamos todos a visualizar a situação. Eu não tenho jeito para fotografia, mas se tivesse não ajudava muito, estimular a imaginação das pessoas é que é, a ver se dá.

E não sei quantas vezes me ajoelhei, mas a brincadeira repetiu-se e a esponjinha amarela desfeita continuava a cair do alvéolo, não queria lá ficar.

Idas e vindas, continuámos assim um bocado. Ao ver-me sozinha de novo, numa ida, fechei a janela. Apanhei os restos de esponja e reservei para mostrar à família os vestígios de uma aventura destas. 

Antes de seguir com o meu dia e não sem hesitar, olho para a janela e vejo a abelha à procura do local por onde tinha entrado. Até me parece que deu uma ou duas cabeçadas no vidro.

Não tornei a abrir a janela e isso não foi bonito. Mas também não o seria acordar um sábado de manhã com uma legião de abelhas acabadas de nascer em casa. Melhor nascerem noutro sítio.

O que há de estranho nisto não é eu vir aqui escrever uma coisa que não tem interesse nenhum.

O que há de estranho nisto é eu gostar das formigas que passeiam na secretária onde trabalho e não as matar nem nada.


(e estava para ir dormir, mas de repente leio uma coisa e arrepio caminho – dá-me saudades não poder comentar naquele blogue, dá dá, saudades e inclinação para escrever uma coisa que não tem interesse nenhum)

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