a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

03/10/2014

Sobras

Deitei-me em cima da cama depois do jantar. Sinto-me cansada e deixo-me ir sem rumo, mergulhada nos meus sonhos que sobraram da infância, ficaram fora deste tempo onde já não cabem. Talvez lá te encontre de novo.

Não acendi a luz, deixo que a claridade que é sobra dos candeeiros eléctricos da rua entre pela cortina translúcida que cobre a janela e se instale livremente. Traz-me a tranquilidade para dentro deste espaço vazio.

Deixo que a luz entre assim, ténue, e fique se quiser a sobrar comigo. Vagueio com os olhos pelas sombras distorcidas que se formam na parede, algumas movimentam-se, sobem sem temor das alturas, também sobram dos carros que passam. Lembrei-me do reflexo da água da piscina no tecto do quarto da casa de verão, nas manhãs em que os meus sonhos acordavam grandes mas eram pequenos, como eu, e cabiam sempre.

Sabes o que respondeu a Marguerite Yourcenar, foi há tanto tempo que li isto, quando lhe perguntaram como chamava o gato dela? "Não chamo, ele vem quando quer."

Faço também assim, não quero torcer o mundo nem as coisas nem a ti, deixo a luz entrar quando quer, como quer, o gato também, mas eu não tenho gato. As pessoas deviam ser livres. E eu quero escrever-te agora e fazer de conta que sou livre, soltar estas palavras que se geram no que sobrou de mim este dia. Andaste pelos meus sonhos e agora andas onde?

Peguei no teu livro, o primeiro que me ofereceste. Pousei-o em cima do meu peito e ele quis ficar. Fechei os olhos e acariciei-o devagar. Senti a superfície fria e lisa, parece que pede que lhe sopre vida para acordar as palavras lá dentro, fazê-las respirar. O livro não se importa que eu seja assim, uma sobra. Peguei nele e beijei-o como se fosses tu ali.

Depois abri-o numa página qualquer e abri também os olhos mas está escuro. Soprei lá para dentro uma coisa que não ouviste, não sei, andas onde?, é um pedaço de vida para o coração do livro, como se fosse tocar o teu.

Acendi a luz. A página da esquerda está em branco. A da direita tem um título: "Aquele que dá a vida".

Ainda me sobrou um sorriso. Talvez te encontre de novo.

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