a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

09/10/2014

A noite não foi

Às vezes parece que a vida se aborrece do sentido único e segue em todas as direcções ao mesmo tempo. Fica o ar turvo e as horas mortas. Fica a cabeça revestida a cortiça por dentro, por fora parece igual mas os ombros descaem, tenho a certeza.

Olho para o relógio, já passa das sete e meia da tarde. Ainda não escureceu, só daqui a algumas semanas muda a hora e então será noite a sério. Mas eu já a trago, à noite, aqui dentro por isso vou até ao rio deitá-la fora na corrente, mesmo ali debaixo da ponte onde as águas são contadas ao passar.
Doem-me as pernas e os braços por causa da nova aula de dança, mas nem isso hoje me amaciou a estopa, é assim que estou.

Não te encontrei no rio, evidentemente, ó sentido único. Nem mesmo a corrente te trouxe para aqui, o meu colo costumava ser bom mas já está vazio.

Encontrei antes, vê bem, um sentido proibido que me deu uma trabalheira a dar a volta ao carro. Portanto fui para casa mais cedo e estacionei na garagem. Esperei que a luz apagasse para abrir os olhos e ver tudo preto, gosto muito de ver tudo preto quando tenho a noite aqui. Adormeci outra vez contigo nos braços vazios, único sentido que te foste. Mas foste.

E que palavra estranha, foste, no entanto é o sino da igreja a dar as oito horas que me acorda, não és tu. Horas que são de ir fazer o jantar, dar corda à vida para ela andar. Ó rima já te disse que não gosto de ti, vai-te embora e volta lá só em junho nos papelinhos espetados nos manjericos, que isso agora não temos.

Fiz um jantar mau e depois sentei-me ao piano. O livro das pautas está aberto no "The Entertainer" do Scott Joplin, toquei várias vezes uma parte da mão direita até sair o mais perto possível do que devia ser. Apaixonei-me por esta música quando tinha uns cinco ou seis anos e a ouvi numa coreografia de patinagem artística no gelo, na televisão. Depois passou muito tempo até a ouvir outra vez, naquela altura não se voltava com programas atrás e eu não sabia o nome daquela que passou a ser a minha música preferida para a pedir pelo Natal.

Hoje também não se volta com os passados atrás, isso é na ilusão das tecnologias que dizem muitas coisas e não. Enganam.

Estou cheia de sede. Parece que sempre deixei cair qualquer coisa ao rio, mas a noite não foi.

Sem comentários:

Enviar um comentário