a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/09/2014

Sapatos, hoje é sapatos

- Aqueles óculos são seus?

Na semi-obscuridade da cabine, decide o meu vizinho do outro lado da coxia perguntar-me uma coisa destas, com certeza não se lembrou de mais nada.

Acordou-me do torpor em que eu me tinha metido, devido a dores que transporto, um torpor conquistado lá muito em cima, a onze mil metros ou então a uma pressão um tanto mais fraca, que não sei quanto é, uma destas circunstâncias ou as duas é que me ajudaram a entorpecer, foi uma sorte.

- Óculos?...

- Sim, óculos, aí, debaixo do seu banco.

Mas eu ando há imenso tempo a ver se me ajeito a escrever acerca de sapatos e não de óculos, desculpem lá. Portanto vamos a isto que o vizinho espera um bocado.

Para que este seja um alinhavo ensaísta não muito desastroso, precisei de me munir de certa coragem, que o tema sapatos costuma andar, andar é propositado, está-se mesmo a ver, fora da zona onde me encontro confortável. Fazer o pino no meio de uma trovoada como a de hoje, com água a correr até aos cotovelos, e de vez em quando a saltar para os olhos, toda suja a água, será, em meu entender, suficientemente desconfortável para servir de ilustração caricatural.

Ora eu entendo ser total, completa e extraordinariamente injusta a situação difícil em que uma mulher, qualquer mulher em idade adulta ou para lá a caminhar, atenção caminhar aqui também, em que uma mulher, dizia, se encontra quando tem de escolher: ou se calça elegante, ou se calça confortável. E notemos bem, é voltar atrás caso haja necessidade, notemos bem que os "ou" ninguém dali os tira, são mesmo dois porque mutuamente exclusivas são as escolhas.

Vamos lá então. Em necessitando de elegância para uma situação exigente, por exemplo imaginemos lá se faz favor uma conferência de imprensa com o ministro da ciência e da tecnologia depois de se ter ganho um contrato com muitos zeros à direita, tantos que já me esqueci quantos, divide-se a concentração de uma mulher entre os elevados requisitos da circunstância e o não torcer os pés ao caminhar, cuidado com as escadas, muito menos tropeçar e cair, ou, como já aconteceu, partir-se um belíssimo salto alto ao meio, na vertical, coisa rara mas possível. Mais valia ter levado as botas de montanha, apetece dizer, ó senhor ministro tenha lá paciência, que os seus sapatos são de certeza confortáveis e elegantes discutiremos eventualmente, não aqui.

E se não fosse ter de desfazer este pino, que as águas subiram e eu, mesmo em ilustração caricatural de desconforto exponencial, estou a perder o equilíbrio, contava de um passeio ao longo do rio, um passeio assim comprido, que os rios têm a mania de ser compridos, mas isso terá de ficar para outro dia, quando não trovejar desta maneira. Cá para mim os céus estão nervosos e pode até ser por causa da injustiça que aqui trouxe hoje.

- Não são meus, não - já com os óculos na mão, viro-me então para o passageiro com cara de chinês sentado ao meu lado. Os óculos são seus?

Ele riu-se muito e acenou imensas vezes com a cabeça.

(estou a ouvir o Leonard Cohen cantar "Suzanne" non-stop e isto já está a fazer-me mal, mas antes de me retirar, quero agradecer à Pipoca Arrumadinha pela entrevista que me fez, um modelo já blogomundialmente conhecido, tal como a sua generosidade o é. Pode ler-se aqui.)

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