a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/09/2014

Cambalhotas na panela

Juntei algumas notas que apanhei aqui e ali. Ia com elas compor uma estrofe ou duas, um entrançado de palavras que me agarrasse a alma enquanto fluía o mote, isto no caso de haver mote, naturalmente. Por acaso também gosto de escrever naturalmente.

Mas primeiro descasquei as batatas para o jantar. Tive de o fazer com cuidado para que elas, as palavras das notas que juntei, não se escoassem pelos meus dedos emprestados à cozinha, toros desajeitados neste laboratório de aromas que não poucas vezes mas rouba não sei para onde e depois não as encontro em lado nenhum. E perder as palavras é que não.

Portanto fui buscar um pedaço engelhado de gengibre que tinha sobrado dos chás primaveris, libertei-o da casca e juntei-o às batatas. Ora eu tenho um fraquinho pelo gengibre e por conseguinte ponho fé nisto.

Acendi o lume a ver no que dá.

A janela está aberta e tenho a certeza de que não choveu. No entanto, o rodar dos carros na rua soa-me à continuidade que lhe é conferida pelo piso molhado, aquele que depois de anoitecer reflecte a luz eléctrica instalada a passos iguais, rua fora, distorcendo-a. As aulas estão a começar e eu tenho é saudades.

Há dias provei chanfana e gostei muito mais do que esperava, afinal ainda não sobrei por completo às pessoas que comem bem e a minha filha disse-me, enquanto eu lavava a loiça, que gosta de mim.

Hoje abracei a minha irmã Ana e notei que não o fazia há muito tempo. Acho, até, que nunca o tinha feito. Gosto da maneira de ela ser mãe. Nunca se zanga e os meus sobrinhos são miúdos felizes.

Ontem estive a pensar em ti enquanto olhava para as estrelas. Depois passou um avião que as quis engolir. Rosnando como um cão raivoso cruzou algumas, mas eu fixei-me nos brilhos estáticos cujas cores me fogem e me tornam a agarrar. Não sei quanto tempo fiquei ali. Ficámos ali.

A água já levantou fervura. Baixei o lume. Diz-me o gengibre, às cambalhotas na panela, que isso, isto, não tinha, afinal, mote nenhum.

Mote nenhum? Pontos bordados que colhi dos dias, estas notas que juntei, flores silvestres que brotam da minha respiração, pedras que assentei no tempo para que a vida não corra tão depressa e eu a possa segurar com as duas mãos, fazê-la durar mais... mote nenhum?

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