a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

04/08/2014

Até a estrada acabar

Torna-se difícil, percebes?

Podia contar-te que a roupa no estendal já secou, que sacudida pelo vento não segura as moléculas de água, as tretas de se diluírem no ar seco, que hoje não chove, mas isso deixava-te na mesma.

Ou então que lá fui ao centro comercial comprar não um mas dois biquínis e que provavelmente não os vou usar, visto que é preciso que haja verão, também aqui nada de novo, para quê incomodar-te.

E podia, mas não o faço, cair na asneira de te dizer que desconfiava seriamente que quando saía do quarto e fechava a porta, as minhas bonecas, a que eu fornecia roupas, umas mal costuradas por mim, outras bem pela minha mãe, a quem atribuía falas e risos e choros, e portanto uma história, desconfiava que se animavam em vida própria, libertas das minhas imposições alinhadas ao estado de espírito de poucas primaveras vividas e então saboreavam a liberdade em pleno. Mas não quero correr o risco de te ver bocejar, abanar a cabeça. Tola eu já sei que sou, deixa lá de negar isso. E vais ver que há mais: e depois dava meia volta e tornava a abrir a porta muito depressa, mas elas, as bonecas, quietas no mesmo sítio, a rirem-se de mim por dentro, conseguiam ser mais rápidas, eu não disse?

E se te contar que fui visitar o rio numa destas manhãs porque as nuvens estavam malucas e filtravam os raios de sol de uma forma que me magnetizou para ali? E que acabei a tropeçar no cabo de um barco velho e a máquina fotográfica que eu tinha na mão disparou para dentro de um ninho com ovos que encontrei numa gaiola onde vive um pássaro verde; também não te vai encher de alegrias, pois não?

Nem isto nem as luzinhas espalhadas pelo jardim na outra noite, a esvoaçar de vez em quando, uma miragem de estrelas na terra que desde a infância não me visitava, verdade? Pirilampos, isso é que elas eram, que afinal ainda existem pirilampos e estas coisas encantam-me, que queres?

Torna-se difícil não me levantar e não te pegar na mão e não te levar pelo caminho abaixo, até a estrada acabar e ficar só a terra muito antiga, calcada pelo cansaço dos milénios vividos ao vento, dos tempos em que choviam pedras e tudo, tenho a certeza, uma busca que faríamos pelas entranhas do universo e que depois talvez, finalmente, me deixasse encontrar as palavras para te dizer que não sei onde pôr esta ternura que sinto por ti.

Sem comentários:

Enviar um comentário