a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

26/07/2014

Sempre na pele

Nesse tempo lembro-me que ainda não existia, embora já observasse.

Já seria capaz, por exemplo, de descrever as tardes soalheiras de verão passadas a ler Agatha Christie à beira da piscina e a buzina do padeiro que anunciava a sua chegada, mas isso era de manhã, pelas dez horas, e nós a correr de chinelos pela rampa abaixo até ao portão, uma de nós com o saco do pão bordado à minhota, que a avó gostava muito daquilo, à minhota, meninas o Minho é muito bonito, e depois o dia começava. Às vezes não corríamos ao padeiro, íamos nas bicicletas a ver quem chegava primeiro, éramos quatro, as minhas irmãs e eu.

No entanto isto que vem já a seguir passou-se muito mais tarde, eu estacionada a meio da casa dos vinte, cheia de multas por pagar não fosse ainda não existir.

Observei, comecei por dizer que então já observava, observei, nessa noite de verão, nem tarde nem manhã, noite, que os festivais de rock sem tecto, aqueles que hoje em dia pululam por todo o lado, ensaiavam o seu escorvamento.

O meu companheiro de então e de inexistência, numa noite quente de julho, levou-me lá. Vamos ao festival, tinha ele dito, vai lá estar muita gente, e eu fui. Nessa noite, porém, foi connosco o vizinho que tinha quatro ou cinco filhos, uma mulher com cara de enjoada que eu duvidava saber quantos eram os filhos, uma empregada interna que ganhava muito mais do que eu e uma tendência atroz para conversas sobre acções de empresas e senhores engenheiros e senhores doutores, conversas muito boas para eu bocejar.

Levei então uma blusa de um tecido vaporoso, azul escuro com bolas brancas e um laço de um dos lados, que eu achava não destoar das conversas sobre as acções das empresas. Na mão tinha metido uma bolsa de palha pintada de verde que a minha irmã mais velha me oferecera num incentivo a que eu passasse, de uma vez por todas, sua parva, a existir.

Dentro da bolsa tinha metido uma nota capaz de pagar um táxi para casa, as chaves, um lenço de papel e a minha alma, para o caso eventual de precisar dela (normalmente deixava a alma em casa).

Numa pausa sobre a conversa das acções das empresas, dos senhores engenheiros e dos senhores doutores, decidi ensaiar uma forma de existência para não deixar a minha blusa destoar, fazer finalmente o que a minha irmã estimulara, sua parva, e disse uma coisa qualquer. Quando me calei, o vizinho que tem quatro ou cinco filhos, uma mulher com cara de enjoada que eu duvidava saber quantos eram os filhos, uma empregada interna que ganhava muito mais do que eu, estica-se na minha direcção e dá-me um beijo na testa.

Então abri a bolsa de palha pintada de verde e deixei a minha alma sair.

Desde aí trago-a sempre na pele.

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