a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

04/07/2014

Alfa Pendular

É a terceira vez que me cai este botão. Das outras apanhei-o, devolvi-o ao sítio, prendi bem a linha, dei mais voltas e cortei com a tesoura, que fica melhor do que levar-lhe os dentes.

Mas desta perdeu-se.

(o Alfa Pendular percorre a lezíria, vamos a duzentos e vinte quilómetros por hora, noto)

Como não uso o casaco salmão tostado sem botão, quando terminei de arrumar a loiça dirigi-me ao armário onde está a minha velha caixa de costura.

Não arrasto os pés, não apanho o cabelo nem uso chapéus, não fumo e não me importo de coser botões. Na rua, alguém deposita garrafas no contentor do vidro no momento em que abro a caixa.

Dentro está um mundo de coisas pequenas e quase todas inúteis, desconfio que nunca darei uso à parafernália de dispositivos e ferramentas de que disponho. Mas preciso de um botão.

(o comboio vai cheio, está uma linda tarde de sol e o computador aquece-me imenso as pernas)

Nesta caixa há muitos botões independentes, fruto dos cuidados das marcas de roupa que pensam nestas coisas de a gente suspirar com o casaco fechado e lá vai o botão; servem, as marcas, peças sobressalentes com o prato principal que costuma ser um casaco, uma camisa ou mesmo uma calça.

(não ponho o computador na mesa basculante disponível no comboio, porque fica muito longe de mim e marreca perco a postura, é só isso)

Encontrei o botão que me vai servir a próxima temporada neste casaco, estava dentro de uma bolsinha de cartão que traz a inscrição “just in case”. E devido ao feliz caso de eu admirar a inteligência subtil das gentes que fazem estas coisas, esboço um sorriso e pego na agulha, vamos a isto.

(estou a ficar enjoada com os movimentos pendulares do Alfa aliados à verdade que vou dizer: o meu almoço foi parco)

Começo a coser o botão no local de onde retirei os restos de linha da vez anterior. Os primeiros movimentos que me levam o braço na diagonal orientada a sul são longos e lentos. O Tejo está lá em baixo a cuidar da cidade que mergulhou na paz logo a seguir à queda da última garrafa no vidrão e eu tenho vontade de ouvir um fado. Os alongamentos do braço a sul vão encurtando gradualmente com o comprimento da linha e o crescer da firmeza da união que estou a criar.

(vai uma miúda ali à frente a ler um livro do Tintim, nunca gostei do Tintim por causa do penacho)

Termino o trabalho dando ainda mais voltas ao remate a ver se desta o botão não se pôe na alheta por dá cá aquela palha e com a tesoura de pontas corto a linha.

(enjoada é favor e as minhas pernas a arder tanto!; talvez marreca ainda mantenha alguma elegância, afinal)

Arrumo a velha caixa de costura e de novo sem arrastar os pés, sem o cabelo apanhado, sem chapéu e sem fumar, vou pôr um fado a tocar na aparelhagem.

Este casaco salmão tostado assenta-me que nem uma luva ou, se dissermos cair, então é que nem ginjas que me cai, é muito bonito e amanhã vou vesti-lo.

(estamos a chegar ao meu destino, fecho o computador)

O comboio pára e a porta abre-se. Coimbra está sob um céu de nuvens.

Antes de me apear, aperto o casaco salmão tostado. Just in case.

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