a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

12/06/2014

Voa porta fora

Estou com o agrafador de barriga aberta para lhe colocar um novo alinhamento de agrafos prontos a usar, formatura em ângulos rectos, riquezas de tecnologia simples e tão útil, quando me entra no gabinete a Ana com o envelope na mão.

A minha colega Ana é magra, não distribui muitos sorrisos, não tenta agradar a ninguém, anda sempre muito depressa, faz o seu trabalho bem feito e fala pouco.

Ora eu gosto de pessoas que falam pouco, não só para me darem a mim tempo de falar muito, oportunidade à qual nem sempre resisto, que por vezes me caem pedaços de céu na cabeça e há que os contar ou então na sopa e há que os partilhar, mas também porque as pessoas que falam pouco não encanam as pernas às rãs e portanto não deitam fora o momento, não me deitam fora a mim, é assim a Ana.

Estamos em junho, há que registar este facto, e a Ana entra-me no gabinete em junho e em dezembro.
Indiferente ao processo de alimentação do agrafador que está a decorrer na palma da minha mão esquerda, estende-me o envelope, olha-me a direito nos olhos, ela sabe que eu a entendo, sabe que eu sei que ela sabe e que sei ao que vem, não é preciso dizer nada, duas vezes por ano, antes do natal e antes do final do ano lectivo, eu ponho agrafos novos no dispositivo e a Ana vem mostrar-me as fotografias dos filhos.

Fica em pé à minha frente, à espera, não tem muito tempo, o trabalho é para honrar, mas os olhos deleitam-se com as fotos que para ela estão ao contrário, eu é que as vejo bem, que crescidos os meninos, Ana, parece que foi ontem, olha para isto!

Quando ligam da escola a informar que um dos meninos está doente, a Ana voa porta fora e vai ser mãe do seu filho. Não sei de que tamanho é a angústia que leva, só sei, o meu coração sabe, que a Ana é uma grande mãe.

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