a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

17/06/2014

Todinho

- Chegou um livro para ti, mãe.

Ando a esquecer-me de coisas.

Do dia dos anos da Carla, nunca me esqueço do dia dos anos da Carla, eu, que gosto tanto da Carla.

De pagar a água que roubei sem roubar do balcão das bebidas lá da cantina a uma hora em que não estava ninguém, quatro semanas durou o meu roubo, paguei-a hoje ao indagar-me da causa da cara feia que a dona Esmeralda me tem vindo a fazer (ela sabe que sou eu a ladra da água).

Depois chego a casa. Como todos os dias, desço o carro até ao fundo escuro da garagem, as ratoeiras continuam vazias e eu desiludo-me com isto, ter ratos na garagem dava uma história e pêras, mas vá, aguento-me com a verdade, portanto carro na garagem, quando o vizinho que estaciona ao lado já chegou, o meu carro fica a fazer que raspa a parede aqui do meu lado e eu salto por cima de tudo e saio pela outra porta, com a brincadeira já conto duas nódoas negras numa perna, é questão de chegar antes do vizinho (acho que ele anda a trabalhar muito, sai cedo e chega tarde, já quase gosto dele). E onde íamos entretanto era já a subir as escadas.

Temos elevador, mas hoje subo a pé em protesto ao que ouvi na publicidade da rádio: as mulheres têm celulite em noventa por cento dos casos. Acho deplorável que o segredo profissional não se aplique às clínicas de emagrecimento de pessoas, coitadinhas, até anunciam que o fazem a casais, casais, uma vergonha, logo os dois, tirando-lhes tudo a começar pela celulite e depois eles vão para o rádio contar, é muito esquisito aquilo. Subi as escadas em protesto, até está na moda isso, e parei no rés-do-chão para colher o correio não electrónico que por vezes ainda recebo (apesar do papel também vir carregadinho de electrões, é correio não electrónico, mas isso deixemos).

Por estes dias espero uma carta, mas a que lá estava dentro da caixa era outra.

Vinha da administração do prédio cujas escadas subo em protesto contra a falta de sigilo profissional das clínicas que fazem reclames na rádio que eu, se mandasse, proibia, penso que já mencionei, e vinha a carta muito bem escrita com os termos que me lembram advogados e que eu não sei usar, esses termos, a informar que a minha pessoa tem as comparticipações vencidas, que é o mesmo que dizer que não pagou a prestação mensal a que se obriga para as despesas deste edifício, e que esse facto teve o início da ocorrência em abril de 2014 e eu, credo, levo a mão livre à cabeça, desde abril que não pago o condomínio??!!

Ora sendo isto demolidor do meu bom nome, assim que o meu protesto supra referido, estes termos roubei-os a esta carta, supra referido, terminou à porta do meu apartamento, lanço-me a corrigir a falha, a apresentar desculpas esfarrapadas mas verdadeiras, a informar a administração que pode retomar comigo o trato informal e caloroso, que nós até somos, vá lá, pode dizer-se amigos, e que daqui para a frente encarregarei serviços infalíveis de me lembrarem de honrar o meu dever.

- Chegou um livro para ti, mãe, ouviste?

De encomendar o livro do Herberto Helder não me esqueci eu, nem de o pagar, não fosse esta edição limitada esgotar-se nas mãos de outros vorazes leitores.

E, antes que me esquecesse, já o li todinho.

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