a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

21/06/2014

O avental

São oito e dezanove quando tocam à campainha. Adivinho que é a promessa que estava ontem afixada dentro do elevador: a visita para a leitura do contador de electricidade entre as oito e as treze.

Limpo as mãos antes de me dirigir à porta, bom dia!

- Bom dia, era para ler o contador.

- Com certeza, era e é, faça favor. Deixe ver, vazio, ponta não tem nada, cheia, ora anote aí.

O serviço durou uma mão cheia de segundos, que eu ajudei a senhora, era uma senhora.

Regresso à cozinha para continuar a espremer as laranjas. Por um lado, anda aí muita gente a ver se instala as redes inteligentes para fazer a leitura dos contadores mas até agora nada, grandes incompetentes, por outro ando eu a ver se combato a minha anemia com a vitamina C destas laranjas, que vai agarrar-se ao ferro dos cereais, é o que dizem, e ainda com sementes de linhaça que fazem o papel da cereja no topo do bolo.

Se no primeiro caso não tem havido resultados visíveis, facto ainda agora confirmado pela campainha que tocou às oito e dezanove, no segundo a história é outra.

É outra e ficará muito mais completa se eu disser, disser não, escrever, que a casa ainda está mergulhada no silêncio, que o sol matinal já entrou e se sentou à mesa da cozinha, que a luz desta manhã revela as sombras que ainda não acordaram, que a nesga de rio lá ao fundo se vestiu hoje de prata enquanto que eu, menos espalhafatosa, optei pelo branco.

No entanto, apesar da beleza inegável deste combate à falta de ferro a que me devotei sem querer, avanço gradualmente para um campo magnético onde nunca estive e tenho, por conseguinte, receio das chaves de fendas.

Quem diz chaves de fendas, diz agrafadores ou mesmo paragens de autocarros.

As paragens é pior, evidentemente. Por precaução, comecei a atravessar a rua para o outro lado sempre que vejo uma dirigir-se a mim, ainda que se mantenha firme agarrada ao chão, a paragem, nunca se sabe se muda de ideias quando eu passar rés vés. E depois era ver-me não a correr atrás do autocarro, mas a fugir da paragem. Ora isto não, uma pessoa sempre tem uma imagem a manter.

Espremo a última metade das laranjas e reflicto nestas coisas.

Se os senhores das redes inteligentes que nunca mais é sábado (por acaso hoje, dia em que escrevo, é, mas aceitemos a maneira de falar), se esses senhores vissem isto, esta escalada de exterminação da anemia, tão bem sucedida, tão eficazmente orientada, haviam de pintar a cara de preto.

Eles a cara de preto, o rio todo de prata e eu assim de branco, está um leque de tons que é uma maravilha, não fosse o meu branco apresentar-se agora salpicado de vitamina C.

É o que acontece quando me esqueço de pôr o avental.

Agradecimentos: à Carla pela dica das sementes de linhaça nos cereais, estou com muita esperança nelas, e à Mafy pelos links da internet que me abriram portas para este casamento feliz entre o ferro e a vitamina C.

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