a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

11/04/2014

Silêncio

Acabo de me dar conta de que gosto muito muito muito de andar de comboio.

Calha mal ter-me dado conta disto agora, que estava para me ir deitar.

Em vez disso, estou no comboio.

Senta-se uma rapariga à minha frente, virada para mim. Claramente estudante, claramente altíssima, claramente podia quase ser minha filha e claramente holandesa. Vejo-a tirar coisas da mala e usar essas coisas. Um telefone. Digita uma mensagem rapidamente e guarda-o. Bzzz dentro da mala, o telefone, ela ignora-o. Um elástico com que apanha o cabelo. Uma volta loira no ar e fica preso como se soubesse o caminho, que bonito cabelo. Uma pequena caixa de bombons com papel celofane a abraçar os bombons. Tira um, mete na boca. Dispenso o celofane. Admiro a passividade com que ela enfrenta o barulho tcheliquoestrínico que emana do celofane e enche a carruagem de ondas sonoras de intensidade razoável, revira os chocolates e tira outro.

Eu tenho sempre travões activos produzidos pela minha insuperável timidez no que respeita a fazer barulho em público que ainda por cima iria revelar, neste caso dos bombons, a gulodice que me assiste e que coabita com a timidez não sei como. Isto para outras pessoas, detesto incomodar outras pessoas, era aqui que eu queria chegar. E esta é a carruagem stilte. Stilte significa silêncio.

No comboio acontece sempre alguma coisa que me provoca introspecção e consequente registo. Timidez. Gulodice.

Depois, ao apear-me, levo um nível de auto-conhecimento mais elevado. E isso não é pouco, é muito.

É muito que gosto de andar de comboio.

(Stilte e tcheliquoestrínico estão em itálico por não serem Português. A primeira é termo Neerlandês, a segunda acabou de me sair.)

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