a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

10/03/2014

Barak

Nasceu em Amesterdão há noventa e três anos. Quando tinha vinte foi chamado pelos alemães, em plena segunda guerra mundial, para trabalhos numa fábrica em Frankfurt.

Não obedeceu, fingiu não ter lido a carta.

Veio nova carta. O mesmo conteúdo. E outra e mais outra. Para ele e para todos os holandeses da sua idade. Uns fugiram do país, tentando escapar. Alguns tiveram sorte, alguns.

Ele não fugiu e quando não pôde resistir mais, foi.

A fábrica maquinava peças metálicas. Trabalhava-se doze horas por dia seis dias por semana. Uma semana das seis da manhã às seis da tarde. Na outra semana o período inverso, turno nocturno, e assim sucessivamente.

Eu estou toda esticada para o ouvir melhor, entre neerlandês e inglês a história vai saindo, ele com gestos ajuda e eu vou-me espantando mais e mais, E mais?, quero saber. Qual era o seu trabalho exactamente?

Ele sorri, juro, ele sorri, este homem é lindo, e esclarece, torneava peças metálicas para os aviões, estava em pé o tempo todo a tornear, assim assim, a mão direita enrosca o ar em espirais do tamanho da peça do avião. Era muito aborrecido.

E não faziam uma pausa?, eu, que vivi tão ao largo de qualquer guerra a sério, tenho sede de saber mais.

Sim, meia hora. Parávamos meia hora. E comíamos na fábrica, de graça. Às vezes era massa!, outra vez um sorriso, porque massa era o que de melhor se comia lá.

Mas ao domingo estava livre e ia visitar um primo que casou com uma mulher alemã e estava a trabalhar, também obrigado, numa quinta. Aí bebia o leite das vacas e comia queijo, alimentava-me bem, compensava.

E onde dormiam?

Havia uma barak (barraca) de madeira perto da fábrica e era aí que dormíamos. Havia prateleiras, ele faz o gesto com a mão paralela ao chão a marcar o ar às postas, e dormíamos aí, nas prateleiras. Não havia colchões, dormíamos em cima de palha. Quando me deitava era um alívio poder descansar. Mas nem sempre conseguia dormir por causa dos parasitas que nos vinham morder a pele, agora ilustra beliscando com os próprios dedos a barriga e o peito, por cima da camisa branca que usa. Foram dois anos maus, concluiu. E fez um gesto com a mão como que a fechar o capítulo.

Mas eu, que não queria ainda acabar, pedi para ele contar da bomba.

Ah, a bomba! (riu um pouco, o riso deste homem é tão bonito) Isso foi uma noite quando soaram as sirenes. As sirenes soavam quase todos os dias e quase todas as noites quando vinham os aviões bombardeiros das forças aliadas. Podiam ser os americanos ou os ingleses. Bem, nessa noite tocaram as sirenes e nós tínhamos de sair da barak e ir para um edifício de pedra para nos protegermos das bombas. Mas quando saímos, tínhamos ainda que atravessar a área descampada até ao edifício em pedra, já os aviões vinham a lançar bombas e uma delas caiu ao meu lado. E não explodiu, ficou ali.


Ontem, quando saímos de casa dele já era tarde. A rodar pelas ruas da noite holandesa deste março quente a anunciar a primavera, eu vinha a pensar nisto.

E a recriminar-me pelas queixas que me ouvi fazer da vida em certos momentos e que à luz deste relato se vestem de ridículo e me envergonham.

A guerra teve (todas as guerras têm) horrores muito mais obscenos, incomparavelmente mais monstruosos, mas esta história também é valiosa para mim.

E é valioso cada canto de cada pássaro que a minha vida pacífica me permite escutar.

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