a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

06/03/2014

A fervilhar

- Crónicas, mãe. O que tu escreves são crónicas.

A minha filha tem o livro de Português na mão e aponta para a prova que ilustra a afirmação,

- Vês? Há os ensaios, há os contos, e os teus são crónicas.

O que eu escrevo, minha filha, vem dos restos que ficam por digerir do que me entra pelos sentidos no dia-a-dia. Mas só sei escrever sobre o que está do lado iluminado da Lua. Sou ao contrário dos Pink Floyd, lembras-te do título do álbum de que gostas tanto?

Por exemplo, nunca escrevi sobre as reuniões de trabalho que me fazem arrepender de não ter tomado um comprimido para o enjoo meia hora antes. Não trago para este espaço a constatação da mediocridade que anda por perto de mim, gosto de manter isto por aqui limpo.

Não contei que na semana passada, lá na serra, vi aquela mancha, pincelada nova, numa das serigrafias que tão airosamente pendurámos na parede. E que me aproximei, que afastei a moldura e que espreitei para a parte de trás. Não contei da colónia de um azul esverdeado seco de fungos em formação género esfiapado que foi apanhada em flagrante pela minha cara de espanto que prefiro não imaginar e que estava, a colónia, instalada ali mesmo. E também não tenciono dizer, meu amor, que a seguir virámos os quadros todos e a colónia verde azulada tinha trazido a família toda e nos obrigaram a dar uma esfrega nas costas das nossas modestas obras de arte, a ver se se safavam.

(será esfiapado uma palavra aprovada pelo Acordo Ortográfico?)

Também não contei que quando entrámos na loja de rações para animais e perguntámos se por acaso tinham um saquito de lenha para nos aquecermos com o seu calor crepitante, o Erik encostou-se à porta de vidro deslizante que separava as duas secções da loja, fez a porta entrar com estrondo no caixilho receptor e a dona da loja saltar um pouco e fazer um sorriso amarelo, e não contei que depois, ao sairmos da loja, ele desencostou a porta de vidro, esta de charneira, para verificar o material de que são feitos os baldes que ali estão atrás e deitou abaixo um estendal de roupa daqueles grandes, fazendo o estardalhaço devido e a senhora saltar outra vez, mas eu gritei lá para dentro que está tudo bem, é ele que é muito distraído, esclareci.

São crónicas, filha, que arranco aos minutos que não sobram no final do dia e que me levam para a cama sempre tão depois da hora certa. São estes temas por digerir que me andam a fervilhar o dia todo, que me levam a escrever uns tópicos no livrinho com capa às flores que tu conheces, não vá esquecer-me de nada, e que só quando me saem pelos dedos e entram pelo teclado me deixam ver de que se revestem de uma ponta à outra.

Portanto como vês, é só o lado iluminado da Lua que aqui se lê.

Também não disse, ainda, absolutamente nada sobre o facto híbrido de utilizar algumas coisas do novo e polémico Acordo Ortográfico e não utilizar outras. E por conseguinte não esclareci, como fazem os blogues que se prezam, que raio de notação é a minha, se de antes ou depois do Acordo, a ver se ninguém nota que eu gosto de todas as eliminações de maiúsculas e de alguns acentos, mas detesto ter de tirar o c de ação e o p de receção, que neste segundo caso fica com a tónica de um falar afectado (c volta, estás perdoado).

(por conseguinte dizia muitas vezes o teu bisavô João)

Ando com vontade de escrever sobre pull-over's tricotados à mão e telefonemas a saber do almoço. Vou meter esta caldeirada que é enternecedora numa nova crónica um destes dias, hoje já não embora me ande aqui o pimento às voltas. Tanto, mas tanto, que gosto de pimento, seja ele de que cor for! De-que-cor-for não é bom de pronunciar mas tinha de ser.

Crónicas, dizes tu.

Hoje Acordei assim, toda Ortográfica, e não me saiu crónica nenhuma.

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