a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/01/2014

Quarta feira

Dois mil e treze foi um ano e pêras.

Mudei de emprego duas vezes, fiz nascer este blogue ainda que timidamente, passei o natal na serra e troquei os sofás cá de casa, sim, são dois (as últimas três palavras encontrei-as no filme de segurança da TAP).

Criei, portanto, dois monos. Animada da vontade de me despojar deles, liguei para a câmara municipal numa terça feira de sol, passou-se isto no julho, para que o serviço de recolha semanal, à quarta feira, se animasse também de vontade idêntica e levasse os sofás velhos.

Fui atendida por uma senhora.

- A sua morada, se faz favor.

(disse a minha morada, à qual poupo os meus leitores, à qual não poupei a senhora da câmara, nem tampouco a privei dos pontos, dos traços, dos "des" e do código postal completo)

- Não, não, tem de ser a morada certa - diz-me ela.

- A morada certa? - agora eu - mas esta é a minha morada certa, já lá moro há muitos anos e sei-a bem, até a sei de cor, veja a senhora.

(faço o telefonema no meu horário de expediente para coincidir com o de atendimento da câmara que cabe todo no meu, e do meu sobram prolongamentos tanto no início como no fim do dia)

- Não, não me refiro à morada que me disse, refiro-me à sua morada certa. Tem que me dar a morada que está na sua factura da água. Tem aí a facturazinha, tem?

- Não, isso é que não tenho, mas eu garanto à senhora que sei muito bem onde moro. Aliás, tenho aqui a chave de casa na mala, que serve mesmo nessa porta que lhe disse e à qual fui sempre ter sem me enganar, garanto à senhora... (e puxo do meu melhor sorriso na esperança que se faça ouvir do outro lado, costuma funcionar).

- Ligue-me amanhã e dê-me a morada certa, menina (ponto um, a tonalidade cristalina da minha voz põe-me muito abaixo da idade que tenho quando ao telefone, ponto dois, esta senhora nasceu sem uma ponta de humor, azar o meu).

Aproveito para esclarecer que em caso de perder a oportunidade de me ver livre dos monos nesta quarta feira, há que esperar pela próxima, o que não se afigura animador, visto ter de saltar por cima de dois sofás de cada vez que há que atravessar o corredor do apartamento desta morada tão difícil de identificar, na qual costumo dormir e comer diariamente.

- Mas por favor, minha cara senhora, acredite em mim, eu sei mesmo muito bem que a minha morada certa, certíssima, é esta, tente lá aí no seu sistema, tenta? (o meu sorriso voltou em força e a minha esperança também) Além disso - continuei - eu ponho os sofás na rua, por isso nem interessa muito o número da porta, pois não? Se eu disser a rua, só a rua...

- Não, não, ligue amanhã com a facturazinha e depois diga-me o seu número de cliente, está bem?

- Ahhh número de cliente... e o meu nome, posso dizer o meu nome, talvez...

- Menina, amanhã - apesar do "menina", a interrupção foi brusca e eu não consegui mesmo nada daquela senhora da câmara.

Os sofás foram parar à garagem e lá ficaram algumas semanas, todas aquelas em que me esqueci de pôr na mala uma factura da água, sempre que era terça feira.

Mas acabou por acontecer. E numa bela noite de verão, finalmente, nesse dia da semana já mencionado largamente, lanço-me na empreitada de movimentar os monstros para a rua como combinado com a senhora da câmara, enfim de factura em riste na mão, a ditar a morada certa e o número de cliente.

Primeiro levo um, fica aqui, encosto-o ao muro, já está.

Agora o outro, é só subir a rampa da garagem, cá vai, é pesado, isto...

E eis que o primeiro está a ser colocado numa carrinha branca, por alguém.

Anunciei a esse alguém este segundo, olhe, há aqui outro, se quiser...

Pediram-me para o esconder, que era só ir pôr este a casa, os dois não cabem, está bem?

Esteve muito bem e o casal, era um casal, levou os dois sofás que me fizeram muitos serões, ouviram muitas conversas, leram os livros que puderam e ainda assistiram a algumas sestas nesta morada e em duas ou três anteriores, mas isto não disse eu à senhora da câmara não fosse ela ficar confusa e pedir-me todo o meu arquivo de facturas da água ou coisa assim.

Na manhã seguinte, como cidadã cumpridora que tento ser, telefono à câmara a avisar que afinal o serviço ficava sem efeito, os sofás tinham sido levados por alguém.

- Ah, menina (lá está, é a minha voz cristalina), não era preciso ligar, a nossa carrinha passa sempre, à quarta feira...

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