a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

08/01/2014

Montanha de sacos

Agora é que não sei como resolver isto.

Todos os dias, pela hora em que fecho as actividades caseiras e me devoto ao silêncio, um amigo de que gosto cada vez mais, tenho a televisão da vizinha do lado a furar-me a parede.

Está bem que não é como um berbequim, verdade seja dita, a vizinha não está a pendurar quadros.

Mas eu, que me assumi aos dezasseis anos como pessoa que não vê nem ouve televisão a menos que haja um programa interessantíssimo (muito raro), e que passei a movimentar-me em casa fora do alcance daquela zoada entediante sempre que me é possível, eu sou pessoa para sofrer com isto.

No domingo, por exemplo, caí no sofá de parva que fiquei. Trazia o pano da loiça na mão e o prato em processo de secagem, entro na sala e olho para o pequeno ecrã para saber do Eusébio mas o que vejo é um programa chamado "Portugal em festa" (tomei nota do título, é bonito) com umas senhoras a agitarem-se muito no palco, umas senhoras que traziam o mau gosto da cabeça aos pés e uma delas desafinava dolorosamente, devia querer cantar, coitadinha, não percebi nada daquela festa de Portugal.

Mas depois vi que estavam a dar uma quantia muito generosa, em dinheiro, lembro-me de vários zeros alinhados no ecrã, os zeros em tamanho p'raí 44 Arial, a quem visse Portugal em festa, era só ligar.

Eu cá não liguei, como digo tinha o pano da loiça na mão e o prato, agora já bem seco, o pano mais molhado, a água lá prefere o algodão, mas voltei, aliviada, as costas ao ecrã, afinal há muita gente a ficar parva com isto, a malta só vê o programa porque sempre vai tendo esperança de fazer um pé de meia.

E agora a zoada que me vem aqui do lado.

Pontuada com gritinhos que trespassam o cimento armado e betumado da parede onde pendurei o José de Guimarães que me custou uma fortuna, realmente usei o berbequim mas foi só uma vez, incomoda-me esta zoada, como já se percebeu.

Não quero lá ir, truz truz, ó vizinha tenha dó, baixe lá isso, ou melhor apague, não quero, não posso. Ia estragar-lhe o pé de meia, não é?

Portanto enfiei nos ouvidos o auricular de fios brancos que me fica bem no tom de pele e finjo que oiço música, enquanto escrevo isto.

Olhar pela janela, suspirar este meu fado em queixume para a noite lá fora, e ver que os caixotes do lixo que não são despejados há muito tempo, acho que se esqueceram de levantar a greve ou então já a colaram à próxima, vão desaparecendo na montanha de sacos que os está a engolir? Isso é que não.

Que eu de caixotes do lixo gosto e não posso vê-los assim.

Portugal em festa?

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