a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/01/2014

Júpiter

Os ponteiros do relógio marcam meia noite e parece-me quarenta e sete ou quarenta e oito minutos, sofro de certo paralaxe daqui. O nevoeiro já se dissipou após uma teimosia mantida o sábado inteiro, fez questão de abraçar a serra sem a deixar ver o pé.

Levanto-me do cadeirão que me lembra o meu avô, é por estar junto à lareira que a memória me põe na infância, visto o casaco e saio para a rua. A luz eléctrica ilumina-me o caminho empedrado povoado de sombras e de brilhos, herança da humidade do dia. Entre as pedras grosseiras, anciãs, toda uma colónia de ervinhas desenha os rectângulos o melhor que pode. A vida quer sempre vencer, penso.

A aldeia está deserta, está sempre assim à excepção de quando vem a família inglesa, não essa, outra, é que se vê gente. E um cão, gente e um cão.

Os meus passos não oiço, as paredes sobreviventes das casas em ruínas já se esqueceram de como se ecoam sons, que sons ausentes são os que ficaram. Não lhes cobro a falha, pelo silêncio em que mergulham, deduzo que se julgam mortas.

No chão a minha sombra agora alongada, cortesia do candeeiro que ficou para trás, chega ao largo antes de mim. Aqui ouve-se a água que continua a correr do cano para o lavadouro público e, embora sabendo-se viva, engana-se muito, que a roupa já não se lava aqui.

Continuo a caminhar até deixar de ouvir a água, sigo o trajecto por baixo dos postes de luz eléctrica branca que prolongam o seu serviço até onde já não há ruínas, casas nunca houve, entregando-me na escuridão que eu penetro até deixar de me ver projectada, esmagada contra o chão.

Não há vestígios do nevoeiro que embrulhou a serra todo o dia, não há vento e quase não há frio.

E agora sim, olho para o céu.

Na imensidão suspensa lá em cima, distingo a via láctea a cruzar o negrume e cá está a minha existência a suspender-se também. Queria inventar uma história para cada ponto luminoso, mas só sei reinventar a minha: a pequenez de que sou feita, a irrelevância dos fragmentos de dor que me inundam o espírito e que agora expulso em espasmos de paz.

Era mesmo isto que me faltava, uma visita às estrelas. Um vislumbre da via láctea e a certeza de que sou tão pouco, tão menos do que sinto, tão exígua que só a paz cabe inteira cá dentro porque vem sem tamanho. 

Encho-me do ar desta noite desembaraçada do manto de névoa que lhe vestiu o dia, mas eu já disse isto, não já?

Olha, ali é Júpiter, vês aquela estrela brilhante?, interrompes-me com o teu smart phone no ar, eu a ver toda a constelação desenhada no ecrã, Júpiter, efectivamente.

Júpiter e esta história que era só minha antes de teres falado. Tornaste:

- Vamos, que o jantar deve estar pronto. Amanhã temos de pôr pilhas novas no relógio, está parado, reparaste?

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