a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

16/12/2013

Pegadas de dinossauros

São nove horas da manhã de uma terça feira de Julho, estamos de férias e tu vens-nos acordar, como sempre fazes quando não é sábado ou domingo, por causa dos lugares para estacionar.

- Bom dia meninas, quem quer vem, quem não vier já, fica! - dizes na tua voz firme.

Acordo e lembro-me que é terça feira. Salto da cama e digo, eu vou eu vou!

Iamos pelo menos duas, no máximo íamos todas quatro. Éramos adolescentes e nesta idade nem sempre a ideia de sair da cama é uma boa ideia, nem que o Sol já vá alto.

O caminho que conduzias até à Praia Grande fazia-se em dez minutos e a essa hora havia lugar para estacionar perto do Angra, o café onde começávamos o dia.

Entramos, todos dizemos bom dia e o empregado já sabe o que vai ser. O café para o paizinho e quatro mil-folhas (se íamos as quatro, vamos supor que hoje viemos as quatro) para as meninas.

À terça feira até podia dispensar o mil-folhas, mas comia-o ainda assim sem olhar para ele e sem saber se me tinha calhado o da cobertura branca com laivos castanhos ou o da castanha com laivos brancos, o empregado já os trazia aos quatro, empilhados num prato, para cima da mesa de madeira.

O que eu queria era o suplemento semanal do Diário de Notícias, que já vinha debaixo do teu braço desde que saíramos do carro e eu sempre admirei as pessoas que compram o jornal do dia e o lêem no dia, as pessoas que se levantam cedo ao sábado para lavar o carro e dizem que gostam de passar pela roupa lavada acabada de estender às janelas da rua e a cheirar a skip, admiro as que vão comprar pão com as galinhas para o comer ao pequeno almoço, ao pão, às galinhas não, e eu, que sou das tardias, pois sou, admiro estas pessoas. Adiante.

Então estava o Diário de Notícias em cima da mesa do Angra e tu, papá, todo inclinado sobre o jornal aberto, o café bebia-lo sem olhar para ele, agarrado às gordas, achava eu, o resto do texto era para ler lá em baixo na praia, à sombra do chapéu, que a manhã ainda era uma criança e nós também, mas em número de quatro, e que tempos bons foram esses.

Depois do café, das quatro mil folhas nas barrigas e do suplemento em meu poder, dobrado a fazer corpo com a minha toalha de praia, não fosse uma das minhas irmãs de repente lembrar-se que afinal também gostava das terças feiras, esse meu tesouro semanal era meu, inaugurado enquanto comia as folhas à dentada até chegar às mil, acho eu, que nunca as contei, depois do café, lembras-te papá, dirigiamo-nos à praia.

Escolhiamos o local de poiso para a manhã e, se a maré estava baixa e o espaço nos deixava mais sossego em redor, a felicidade suprema vinha sentar-se comigo na areia e eu sem saber o que era aquilo, só sabia que bom, que bom, e lia as crónicas e foi aí que aprendi que gosto de ler crónicas. Alguma vez te contei?


Abro os olhos. O livro que comprei há pouco no aeroporto está no meu colo, aberto na página que estava a ler quando mergulhei nas recordações. Olho pela janela e a escuridão da noite devolve-me o piscar ritmado da luz da asa do avião.

Estou tonta. A recordação, desenterrada pelas crónicas do António Lobo Antunes que me descansam agora no colo, fez-me isto.

Aqui, sentada ao meu lado no avião, está outra vez a felicidade, sim, suprema, essa que nasceu naquelas manhãs na praia.

A felicidade e dois holandeses que jogam trivial pursuit com um ecrã que mostra o tabuleiro redondo visto em perspectiva a fingir 3D e de vez em quando sai uma pergunta. Esta é sobre dinossauros. Eles não acertam.

Fecho os olhos de novo.

Se naquele tempo eu soubesse que na Praia Grande havia pegadas de dinossauros, teria saltado da cama todos os dias. Se não fosse terça feira, havia de ser dia de explorar pegadas.

E agora até podia escrever uma crónica sobre isso.

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