a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/12/2013

Favas com porco

Aproximo-me com o tabuleiro debaixo da minha mão que, espalmada sobre ele o faz deslizar ao longo dos varões metálicos que correm à frente do balcão com as sobremesas, saladas e bebidas da cantina lá da empresa. Estamos na hora do almoço e eu gosto da hora do almoço.

Levo na mão a vinheta onde assinalei a refeição que escolhi previamente de um menu de quatro alternativas, e ela, ao ver-me em aproximação nem lenta nem rápida, que eu sou pessoa mediana, pergunta-me o que vai comer, dona...

- Susana, dona Esmeralda - ajudo-a a dizer o meu nome. E depois acrescento, carne.

(este parágrafo pode ter ficado um bocado esquisito, se a minha filha mais nova o ler vai fazer as paragens nos sítios errados, vai ficar confusa, vai agitar a cabeça e ler outra vez, ora vamos lá)

- Carne?! Vai comer favas?!

- Vou, eu gosto de favas.

- Mas a carne, o porco, os enchidos, isto tem porco, ora veja - e rebola as favas e companhia com a colher gigante dentro do tabuleiro rectangular, metálico, cheio de mossas - vai comer isto, escolheu este prato?

- Sim, eu gosto de favas, dona Esmeralda, repito e sorrio-lhe, para ela ver que eu estou a sério.

- Estou admirada que a menina (às vezes sou menina, outras vezes dona...) vá comer isto, insiste ela que na verdade precisa de saber mais, eu gosto de favas não lhe chega.

Eu já disse isto uma vez aqui e vou tornar a dizer. Gosto desta mulher.

Vai adiantada na casa dos cinquenta, levanta-se às cinco e dez da manhã, atravessa o rio Tejo para vir trabalhar e chega a casa depois das sete e meia e de atravessar o rio Tejo outra vez.

Antes de o marido lhe morrer, há dois anos, ela ouvia música nessas travessias e nos percursos de autocarro.

- Que música ouve, dona Esmeralda?

- Ah, é rádio que oiço, é a comercial, distrai-me. Eu gosto muito de música.

Um dia, enquanto limpa as lágrimas do luto às costas da mão que tem queimaduras feitas no forno, na outra mão segura os óculos que vai limpar à bata de trabalho, conta-me que pouco antes de morrer, o marido, muito magro, na cama todo o dia, a chamou.

- Deita-te aqui um bocadinho ao pé de mim.

- E eu, menina, tinha tanto que fazer, sabe como é, as coisas da casa, o comer, arrumar aqui e ali, as minhas netas para chegar, mas fui. Deixei-me ficar deitada ao lado dele um bocadinho.

A dona Esmeralda deixou de ouvir rádio porque o marido morreu e quer saber porque vou comer as favas com todo aquele porco.

E eu, que lhe disse a verdade, gostaria que ela tivesse alguém que se deitasse um bocadinho ao seu lado e lhe dissesse que não faz mal continuar a ouvir música para se distrair.

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