a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/11/2013

Quarenta e cinco milisegundos

Os automóveis andam-me a fazer a cabeça em água.

No mês passado raspei o carro do vizinho. Na alegria de chegar a casa esqueci-me que o meu veículo, ainda que fantástico, não vira o volante sozinho nem nos contornos bem conhecidos da garagem onde mora.

Bem, escrevi um post muito ajeitadinho sobre o que ocorreu, mas não no detalhe que agora venho acrescentar. Na verdade ficou impresso no carro um baixo relevo que progride longitudinalmente, num esmorecer para a direita de quem olha de frente, uma composição artística que só pode ser obra do design, ou então desígnio, que é parecido, pois é, e é do destino que ele é, a ornamentar-me a traseira direita do meio de transporte que privilegio, e que me valeu um orçamento composto por muitos algarismos. Deixemos isso, fiquemos por aqui, se o seguro não cobre extravagâncias, eu também não. E sempre ficou um carro único, obra assinada.

E o vizinho? Se há quem pense que calei o meu desvio da rota curvilínea e nada contei, desengane-se, que eu gosto de deitar a cabeça na almofada e dormir que nem uma pedra ou como um anjo ou ainda como um bebé, não sou esquisita.

O vizinho viu-me bater-lhe à porta, viu o esmorecimento que vem aí de dois parágrafos atrás, agora estampado na minha face corada, boa noite, espero não incomodar, mas só até eu lhe dizer o que foi, raspei-lhe o carro, desculpe lá, ó vizinho.

Preenchidos os papeis, trocados os contactos (que este era vizinho desconhecido), perdoados os males que nos vieram ao mundo naquele dia, a coisa seguiu para as companhias de seguros respectivas.

Há dois dias abri um intervalo na minha hora de almoço para visitar a secção de finanças de um bairro perto do trabalho. Não porque as minhas horas de almoço sejam tão más que eu, vai disto, nas finanças é que é, sempre se ouve o tilim do chamar das senhas, há movimento, não, as minhas horas de almoço não são más mas há coisas que tem de ser e a visita às finanças é uma realidade que meti na minha segunda feira.

Após o tilim que chamou o meu número e que deu em insucesso financeiro, é que não atingi o objectivo da minha visita, o melhor é voltar numa sexta feira que à segunda isto não funciona, de regresso ao meu veículo já largamente referido neste post, não é que, ao caminhar ao longo dos outros estacionados vejo qualquer coisa pelo canto do olho, qualquer coisa que me chama, que reconheço de outras paragens?! O veículo que ficou como B na folha amigável que tinha preenchido, eu mais o vizinho, estava ali, coitadinho, a ostentar ainda a ferida que eu lhe postei.

Isto consolou-me, claro, afinal o vizinho também gostou do design do destino, ou desígnio, para quem não gostar de estrangeirismos, e assim já somos dois.

Sorri e nisto tocou-me o telemóvel.

- Está? Sim? Minha senhora, não é para vender nada, não, não, por favor, juro, é de uma agência de (não sei quê) de estatísticas de estudos de mercado e a sua resposta é muito importante e preciso só de lhe fazer três perguntas, por favor, posso? Tomo-lhe apenas quarenta e cinco milisegundos, nem mais um.

- Pode, vá lá - eu ainda sob o efeito do consolo que senti e que mencionei acima, e então esquecida de tirar o sorriso da cara.

- Tem telefone fixo em casa?

- Tenho.

- Qual a operadora?

- Zon.

- Que idade tem?

- Eu? Quer saber a minha idade? Lembra-se dos seus quarenta e cinco milisegundos? Em anos é a minha idade, mas pareço muito mais nova.

E pareço, mesmo.

(Este post foge pouco à realidade dos factos, apesar de parecer inverosímil. Foge apenas no momento do telefonema que não foi no dia das finanças e sim mais tarde, mas o post estava a ficar demasiado comprido. Valente quem não fugiu e leu até aqui, que isto ficou bom de se ler.)

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