a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/11/2013

Do tamanho dos meus sapatos

É sábado à tarde e o meu programa não é dos que me fazem pular de alegria, que eu, em tendo motivo, pulo de alegria.

Entro no sector do apoio ao cliente da grande superfície que vende electrodomésticos, aparelhagens de som e máquinas de barbear, entre muitíssimas outras coisas a cuja menção, não tenhais medo queridos leitores, vos vou poupar.

Dirijo-me ao dispensador de senhas de vez, tiro uma, verifico que estão seis números à minha frente e sento-me com o meu electrodoméstico avariado ao colo.

Os meus olhos estão perdidos no vazio deste espaço sem alma e desfocam-se até me adormecerem o cérebro e me acordarem os confins da memória, enquanto embalo o meu electrodoméstico a precisar de apoio ao cliente.

Vejo-me sentada à mesa do refeitório do colégio, desta vez já tenho seis anos, disso sei porque o refeitório não é o mesmo que andei a sujar há três posts atrás e, em vez de trazer a comidinha de casa, tenho de comer a que me é oferecida a bordo das mesas de seis lugares, esta em que estou tem-me a mim e mais cinco cadeiras já vazias.

Hoje o almoço é empadão de carne esmagada. De cada vez que engulo a garfada vem-me aquela impulsão na garganta que tenho conseguido reprimir até agora, com muita concentração e muita noção de que é pecado não gostar da comida, há tantos meninos com fome no mundo.

Mas, apesar do meu sincero empenho, sinto-me culpada por levar tanto tempo a deglutir uma dádiva à qual eu devia estar agradecida, e por isso rezo, à minha moda, para que a senhora que anda com o tabuleiro gigante do empadão na mão a circular ainda pelas mesas, não repare na minha ingratidão, lentidão e sobretudo não adivinhe o meu pensamento pecaminoso de rejeição atómica deste empapado que me puseram à frente.

Mas ela vem aí, mesmo na minha direcção. Inclino a cabeça na esperança de ocultar o que ainda me descansa no prato, e eis que estaca o passo junto de mim, eu quase a tapar com as mãos o empadão malvado. A senhora pergunta, sorridente, que esta é boa senhora, quer mais menina? Quero quero, digo muito depressa, e penso: vou, vou comer tudo, tenho de conseguir, é só mais este bocado, vá lá, vá lá.

Falha de comunicação. Duas colheradas do tamanho dos meus sapatos, uma atrás da outra, despejam mais daquilo em cima do que já cá estava, este novo monte de empapado a fumegar e a cheirar muito intensamente, para eu comer.

Desmaiei, chorei, fugi, chamei pelo gregório, uma destas foi, escolham vocês. Eu escolhi nunca mais comer empadão.

E chega a minha vez de beneficiar do apoio ao cliente.

Levanto-me e dirijo-me ao rapaz que se prontifica a ouvir-me a queixa.

- Esta trituradora que ofereceram na compra do frigorífico e que ainda está em garantia, veja aqui o papel, se faz favor, avariou.

- Hum, hum, uh uh. Estranho, deixe ver... É uma boa trituradora, eu tenho uma igual e a minha mulher ontem fez um empadão de carne que a senhora havia de ver, uma maravilha. Levantou a cabeça e sorriu para mim.

Mas eu já lá não estava.

27/11/2013

Cancela

Hoje tive a certeza, anda alguém a trazer para aqui vasos com flores.

Entro com o carro e passo na cancela que se levanta todas as manhãs muitas vezes, uma delas é para mim, ao chegar ao meu local de trabalho. Viro o volante à direita para fazer a curva apertada do costume, todos os dias é isto, mas hoje tive a certeza: o número de vasos com flores, alinhados no murinho do qual me desvio se não quero raspar o meu veículo outra vez, que não quero, tem vindo a aumentar e hoje compunha um alinhamento de alto lá com ele, coisa bonita. Pena tenho de não me ter ocorrido tirar uma fotografia para postar aqui e trazer o florido às nossas vidas (à minha, que escrevo, e à do meu querido leitor ou da minha querida leitora, que lê), mas pensando melhor ainda bem que não tirei as mãos do volante nesse momento crucial de viragem do dia. À falta de foto puxemos, portanto, pela imaginação.

Desconfio do porteiro.

Aquele é homem de saber apreciar a vida. O seu gabinete de trabalho, não lhe vou chamar casota, dentro do qual está o botão que ele prime para fazer levantar a cancela dos bons dias, e que eu imagino ser vermelho, deve ter uma área não superior a meio metro quadrado. Se não fosse a cortina de ripas horizontais a descair para um dos lados, pendurada na janela de dimensões ridículas, imaginação para que te quero, mais uma vez, aquilo faria lembrar uma casa de banho das que aparecem no Rock in Rio e por aí.

Ora o nosso homem tem sempre assunto fresco com que nos entreter, se calha alguém se demorar mais na saudação à passagem. Versando habitualmente pelas áreas das medicinas alternativas, não há dor que se faça passar por debaixo da cancela que eu já referi e que um dia foi ornamentada com riscas enviesadas brancas e vermelhas, pois não há dor, como eu dizia, para a qual ele não tenha remédio.

Foi assim que conheci as bagas goji.

Passa-se isto muitíssimo antes de a cadeia de supermercados onde me costumo abastecer, em visitas rápidas demais que me fazem normalmente lá voltar porque faltou a pasta de dentes, as descobrir, às bagas.

Tendo conseguido este homem convencer alguns dos meus colegas mais temerosos, passei a ser espectadora da ingestão das ditas bagas à mesa da cantina, que sim senhor, isto é coisa que faz bem a tudo, precisar o detalhe faz-bem-a-quê é que eu já não posso, que se me varreu. Lembro que se passa isto há muito tempo.

O que posso afiançar é que as bagas goji não emagreceram ninguém, não fizeram aumentar nem diminuir a produtividade de ninguém e não rejuvenesceram alguém, que ninguém estava a ficar repetido.

E deve ser por isso que este homem, que quer é o bem de todos nós, se dedica agora a alindar-nos a entrada.

Amanhã paro debaixo da cancela e pergunto para que são as flores.

É que estou a precisar de um remédio para a curiosidade.

21/11/2013

Carne aos bocados

Ponho o pé no travão e imobilizo o carro junto ao semáforo, está vermelho.

Um homem e duas mulheres iniciam a travessia da estrada, ele leva uma mala de computador a tiracolo, elas a obrigatória mala de senhora e uma lancheira cada uma que, alvitro eu, lhes acondiciona o almoço.

Desvio os olhos dos transeuntes e penduro-os no círculo vermelho luminoso acima da minha cabeça. Observo-lhe as nervuras rectilíneas que se entrecruzam na forma convexa do vidro.

O sol brilha no céu azul e frio e inunda-me o rosto desta luz, arranca-me daqui e despeja-me naquele dia em que a minha lancheira do almoço era maior que estas que cruzam a estrada, era branca e tinha bolas encarnadas. Se isto fosse um filme a coisa fazia-se assim: de um plano close-up da luz vermelha do semáforo morria-se para o plano também close-up de uma das bolas da minha lancheira e depois a andar para trás até se ver a lancheira toda, e até se ver que eu era pequena e que punha com esforço a lancheira em cima da mesa do refeitório do colégio. Mas isto não é um filme, é um blogue.

Tenho cinco anos, não gosto do cheiro do refeitório, caminho com cuidado sempre que aqui entro porque o chão costuma estar gorduroso e eu não quero escorregar nem quero cair.

Chego ao meu lugar na mesa compridíssima, elevo a lancheira com esforço e ponho-a em cima da mesa, como a imagem do filme já mostrou, tiro o pano, que desdobro, e estendo-o na fórmica branca, agora o molho de talheres que vem dentro de um envelope de tecido de algodão com as inicias da minha avó bordadas, na berma do pano. Sai o prato que é de plástico amarelo, de plástico porque aos cinco anos há o risco de partir um prato se for de loiça, e amarelo porque a minha mãe gosta muito desta cor e fica aqui bem ao lado do pano das iniciais, com os talheres. E agora o termosDesenrosco a tampa, sinto que o que lá vem dentro ainda está morno, e espreito.

Carne aos bocados. Detesto carne aos bocados.

Deito o conteúdo no prato amarelo - a carne aos bocados e a massa, também vem massa - e sento-me.

Começo a comer a massa.

Enquanto luto para que o fio de esparguete não demore muito a entrar-me na boca, não é fácil manobrar estes fios compridos, quase me falta o ar, espreito pelo canto do olho à procura da dona Efigénia, a senhora temível que toma conta deste refeitório e que nunca o limpa, acho eu, a ver se ela está a olhar para cá. Não está. Pego no primeiro bocado de carne aos bocados e deito-o para o chão, debaixo da mesa, disfarçadamente.

Mais um comprido fio de esparguete a debater-se comigo, desta vez o meu poder de sucção é tal que a ponta do fio bate-me no nariz antes de me entrar na boca, e a dona Efigénia distraiu-se outra vez com o António Manuel, que é uma peste e está a dar-me agora um jeitão que ele seja uma peste.

Vou alternando os lançamentos de pedaços de carne aos bocados para a direita e para a esquerda, debaixo da mesa, não vá o chão perto dos meus pés ficar saturado e eu ser apanhada a fazer pior que o António Manuel.

Continuo a comer a massa, cada vez mais confiante, e continuo a popular o gorduroso chão do refeitório, que agora já sei porque era gorduroso aquele chão.

E termino o serviço. O meu prato está que nem sol sem nuvens isento de mácula ou vestígios, a minha barriga cheia de esparguete e o chão já se sabe.

Levanto-me e começo a arrumar tudo outra vez dentro da lancheira com bolas encarnadas. O refeitório já está quase vazio mas eu faço-o devagar, para despistar suspeitas. Sinto-me poderosa, porque disto nem a minha mãe vai saber, a não ser que me ande a ler o blogue.

Se a minha querida mãe me anda a ler o blogue não sabemos, o que sabemos é que a dona Efigénia está a inspeccionar o chão debaixo da mesa onde eu ainda estou, agora a dobrar o pano, que fecho neste fim de espectáculo.

- Ó menina! Aquela carne não é sua? (o meu coração dispara e eu finjo que não oiço a dona Efigénia)

- Menina! Havia carne parecida com aquela no seu prato, que eu vi! (continuo a fingir que não oiço, o meu nome não é "menina", António Manuel, onde estás?)


O carro de trás apitou, o sinal estava verde.

Arranco e penso que nunca se deve confiar nas pessoas que não aprendem a chamar-nos pelo nome, nem quando fazemos asneiras.

19/11/2013

Inflamados corações

Quem viu o jogo com amigos pôs-se aos pulos em abraço comunitário, e aos gritos, porque este de hoje foi jogo de valor, como se costuma dizer.

Quem tem facebook escreve esta noite no facebook sobre o jogo.

Quem sabe tuitar fá-lo por aí sobre o jogo.

Quem tem um blogue pode espraiar-se mais ou espraiar-se menos e divagar sobre o jogo.

Quem não tem nada disto, mas tem telefone, já ligou a alguém e está a falar sobre o jogo.

Quem vai no carro dá murros na buzina, que eu estou daqui a ouvir.


Eu não percebo nada de futebol e não gosto de me meter pelo tema adentro, porque o mais certo é espetar-me nalgum poste de sentido proibido, pagando com um galo na testa a distracção.

Mas há uma coisa que eu percebo.

Percebo que nós, povo lusitano, dorido de cortes nos salários, ajustamo-nos aos cortes nos salários, nós, povo sofrido com o aumento da idade da reforma, conformamo-nos com haja saúde e ainda metemos no horário o transporte dos netos à escola, nós, povo magoado com o encurtamento das férias, aprendemos a compensar aos fins de semana, convidamos mais vezes os amigos e distribuimos abraços a torto e a direito, que é assim que somos, nós, povo desiludido deste lugar ao sol que parece não lhe pertencer, aproveitamos a praia até ao limite, nós, povo que dantes andava de carro, aprendemos as vantagens do comboio, do metro e de andar a pé.

Mas constato sem hesitar que há uma régia excepção, um intervalo neste padrão de ajustes que carregamos às costas e nos marca as passadas.

É que nunca este bom povo de Portugal, nunca estes lusos, inflamados corações, muito ou pouco entendedores da arte de chutar a bola, nunca esta boa gente se adaptaria a ficar de fora nas classificativas para um mundial de futebol.

E a isto, meus senhores, eu tiro o chapéu.

17/11/2013

Folha de hortelã

Para a viagem pus na mala três livros, dois para ler e um para escrever. Um dia ainda hei-de viajar só pelo prazer de ler em viagem. E escrever, ler e escrever.

Apanho o táxi para o aeroporto na praça do costume e desta vez o motorista é desconhecido, mas só até me pôr a par da sua história.

Homem de quem a juventude já se despediu, mas a velhice ainda não conseguiu saudar, diz-me que vai ficar frio no fim de semana, minha senhora. Oito graus. E vai fugir do nosso frio ou vai para mais frio, quis ele saber. Vou para mais frio, mas primeiro é para o aeroporto, se faz favor (há momentos em que me é de todo impossível conter a vontade de gracejar). Ele perdoa-me e continua.

Sabe a senhora que eu gosto de pegar cedo ao trabalho, às cinco horas faço a minha higiene, banhinho (juro que ele disse banhinho), e às cinco e meia já estou no carro, minha senhora. E levo muita gente ao aeroporto, muita gente, entro e saio do carro, por causa da bagagem, àquela hora, e não me constipo. A minha mãezinha (e agora disse mãezinha), teve oito filhos e nós andávamos descalços a fazer ski no gelo que havia na erva de manhã, sabe a senhora, caíamos muito, mas ninguém se importava, não tínhamos frio. Depois comíamos a canjinha (sim, canjinha) com aquelas galinhas, um bocadinho de sal, uma folha de hortelã e a gordura dava-a a galinha, era aquele cheirinho (cheirinho)! Ah, aquilo é que eram tempos, minha senhora. Dos meus irmãos só ficámos vivos quatro, os outros morreram com dias ou com meses, sabe, era assim, os mais fortes é que vingavam. Por isso é que eu não me constipo, concluiu.

Chegamos ao aeroporto, a viagem até aqui é curta, e ele, com um suspiro que o traz para o momento presente, informa-me: são cinco euros e noventa e cinco cêntimos, minha santa senhora.

Eu, com a mão em curso de mergulho na profundeza da minha mala em busca da carteira, sou apanhada de chofre, santa?!

Sim, diz ele, eu sei ver quem são as pessoas e a senhora eu vi logo, é uma santa senhora. E digo isto porque é mesmo, que há senhoras que falam falam e é cá uma conversa que eu mando-as falar com o marido delas.

Paguei a corrida, agradeci-lhe o cumprimento e cruzei as portas automáticas do edifício, que me pareceu darem-me as boas vindas com aquele escorregar certeiro, a abrir caminho, ou então é de me sentir santa.

É que isto é homem que sabe do que fala, penso, enquanto subo o tapete rolante.

Canja de galinha fica mesmo muito melhor com uma folha de hortelã.

14/11/2013

Quarenta e cinco milisegundos

Os automóveis andam-me a fazer a cabeça em água.

No mês passado raspei o carro do vizinho. Na alegria de chegar a casa esqueci-me que o meu veículo, ainda que fantástico, não vira o volante sozinho nem nos contornos bem conhecidos da garagem onde mora.

Bem, escrevi um post muito ajeitadinho sobre o que ocorreu, mas não no detalhe que agora venho acrescentar. Na verdade ficou impresso no carro um baixo relevo que progride longitudinalmente, num esmorecer para a direita de quem olha de frente, uma composição artística que só pode ser obra do design, ou então desígnio, que é parecido, pois é, e é do destino que ele é, a ornamentar-me a traseira direita do meio de transporte que privilegio, e que me valeu um orçamento composto por muitos algarismos. Deixemos isso, fiquemos por aqui, se o seguro não cobre extravagâncias, eu também não. E sempre ficou um carro único, obra assinada.

E o vizinho? Se há quem pense que calei o meu desvio da rota curvilínea e nada contei, desengane-se, que eu gosto de deitar a cabeça na almofada e dormir que nem uma pedra ou como um anjo ou ainda como um bebé, não sou esquisita.

O vizinho viu-me bater-lhe à porta, viu o esmorecimento que vem aí de dois parágrafos atrás, agora estampado na minha face corada, boa noite, espero não incomodar, mas só até eu lhe dizer o que foi, raspei-lhe o carro, desculpe lá, ó vizinho.

Preenchidos os papeis, trocados os contactos (que este era vizinho desconhecido), perdoados os males que nos vieram ao mundo naquele dia, a coisa seguiu para as companhias de seguros respectivas.

Há dois dias abri um intervalo na minha hora de almoço para visitar a secção de finanças de um bairro perto do trabalho. Não porque as minhas horas de almoço sejam tão más que eu, vai disto, nas finanças é que é, sempre se ouve o tilim do chamar das senhas, há movimento, não, as minhas horas de almoço não são más mas há coisas que tem de ser e a visita às finanças é uma realidade que meti na minha segunda feira.

Após o tilim que chamou o meu número e que deu em insucesso financeiro, é que não atingi o objectivo da minha visita, o melhor é voltar numa sexta feira que à segunda isto não funciona, de regresso ao meu veículo já largamente referido neste post, não é que, ao caminhar ao longo dos outros estacionados vejo qualquer coisa pelo canto do olho, qualquer coisa que me chama, que reconheço de outras paragens?! O veículo que ficou como B na folha amigável que tinha preenchido, eu mais o vizinho, estava ali, coitadinho, a ostentar ainda a ferida que eu lhe postei.

Isto consolou-me, claro, afinal o vizinho também gostou do design do destino, ou desígnio, para quem não gostar de estrangeirismos, e assim já somos dois.

Sorri e nisto tocou-me o telemóvel.

- Está? Sim? Minha senhora, não é para vender nada, não, não, por favor, juro, é de uma agência de (não sei quê) de estatísticas de estudos de mercado e a sua resposta é muito importante e preciso só de lhe fazer três perguntas, por favor, posso? Tomo-lhe apenas quarenta e cinco milisegundos, nem mais um.

- Pode, vá lá - eu ainda sob o efeito do consolo que senti e que mencionei acima, e então esquecida de tirar o sorriso da cara.

- Tem telefone fixo em casa?

- Tenho.

- Qual a operadora?

- Zon.

- Que idade tem?

- Eu? Quer saber a minha idade? Lembra-se dos seus quarenta e cinco milisegundos? Em anos é a minha idade, mas pareço muito mais nova.

E pareço, mesmo.

(Este post foge pouco à realidade dos factos, apesar de parecer inverosímil. Foge apenas no momento do telefonema que não foi no dia das finanças e sim mais tarde, mas o post estava a ficar demasiado comprido. Valente quem não fugiu e leu até aqui, que isto ficou bom de se ler.)

12/11/2013

Engenheira electromagnética

Levo a vida a sério e gosto que me levem a sério.

Não gosto que me toquem à campaínha para me informarem dos novos produtos das operadoras de comunicações, é assumirem que eu ando distraída e não sei que tarifários tenho em casa, nem quantos canais de televisão me enchem as possibilidades, nem o que anda a oferecer o mercado, é presumirem-me aberta a tentativas persuasoro-invasoras, e assim invento, não sem estilo, a palavra composta perfeita para o fenómeno desta praga.

Hoje tocaram-me à campaínha pela manhã, apanharam-me com a torrada na boca e o café na mão, quem é, perguntei, com a cassette do não quero obrigada, preparada. Mas era o homem da companhia das águas para fazer a leitura do meu contador, homem de trabalho, não está com conversas, entra, escreve o número e sai, bom dia. Leva-me a sério, este homem, toma o registo dos algarismos alinhados pelos roletes engrenados do aparelho e eu aprecio isto. O dia começou bem.

Não gosto que no encetar do conhecimento profissional com uma mulher, ela se avance para os dois beijinhos que não são para aqui, não senhora. Apesar de a iniciativa ter o seu quê de simpático, não é de levar a sério, é de perceber que esta mulher me assume profissional de trazer por casa, categoria na qual ela se declara inserir. Se for homem o interlocutor que se cruza no meu caminho de trabalho e se quer por aos beijos, registo-lhe no cadastro a mesma conclusão. Senhores, trabalho é trabalho, há que reter. Mas, convenhamos, é mais no caso mulher-e-não-homem-que-conheço-profissionalmente que o evento se verifica.

Hoje conheci uma mulher nas circunstâncias expostas acima, que me estendeu a mão. E com firmeza, ainda por cima. É de respeito, esta mulher. A conversa sintonizou-se logo na frequência certa e ninguém deitou palavras fora, ninguém sujou o assunto, que é sério, com trivialidades dispensáveis. E vão duas. O dia continuou bem.

Agora mesmo em que termino este escrever, oiço um alarme de automóvel tinir ritmado, desafinado, lá em baixo, nesta rua que haveria de ser pacata se eu fosse a engenheira electromagnética que a minha filha um dia perguntou se sou. Mas não, a minha engenharia fica-se para já pela opção de não ter alarme no carro, facto que me garante, ao ouvir este apito insistente, que o veículo em apuros não é o meu.

E o dia acaba bem.

11/11/2013

Outono


Castelo de Doorwerth, Países Baixos

Não foi neste outono, foi noutro. E estava frio.

Caminhávamos no tapete de folhas caídas. Falavas da tua trilogia que eu não entendo, aquela dos senhores e dos anéis. Saía fumo branco da tua boca a acompanhar a história, a torná-la mais autêntica, reparaste? Contavas que o velho tinha cento e onze anos e fez festa de aniversário. Disso gostei. Continuaste, que a história é longa e o caminho das folhas também.

Não sei quanto tempo andámos assim, o teu narrar interrompido pelas minhas perguntas, que escasseiam à medida do teu progresso. O meu nariz estava muito frio, lembro-me, e isso tornava as minhas palavras pesadas, calei-as. Tu continuaste.

A tua história de homens pequenos e homens maus, escuridão, coragem, medo e perseguição, ilustrava o mote que move os povos e produz as guerras, o poder.

Eu disse-te, mas tu já sabias, que nunca entenderei a guerra, que não entendo a sede de poder. Tentaste explicar-me a lógica, o inevitável, as forças instaladas e eu, então, não te pude ouvir mais.

À nossa frente estava o castelo e o cenário acordou-me dos porquês. Estaquei o passo, tirei a máquina do bolso, as mãos entorpecidas pelo frio, fotografei. Enquanto a devolvo ao meu casaco grosso, penso que talvez tenha sido o poder a fazer nascer isto. E eu, que o não entendo, que o rejeito, acabara de lhe fotografar um feito.

Entrámos na cafetaria instalada para os visitantes. A lareira da sala estava acesa e cheirava a café. Ouvia-se Mahler em fundo. Nas paredes, obras de autores deste tempo, coloridas, destoam da tua história e desta sala de pedra, velha, que as patenta sem as entender. Dei uma volta a cumprimentá-las - não se passa por uma obra sem a cumprimentar - enquanto encomendavas o café.

Sentámo-nos perto da janela, para que eu não perca o outono de vista. Porque me encanta assim?

Com o café quente na mesa e o nariz descongelado, anuí, enfim, a ver o filme contigo. Só porque me contaste a história naquele outono.

Mas isso eu não te disse. O café está bom, tu gostas da tua trilogia, as paredes ostentam obras das quais nada sabem e eu talvez um dia entenda isto.

09/11/2013

Resposta certa

Compro, na internet, os bilhetes para a ópera. Recebo, por email, um documento para imprimir e comprovar o pagamento. Bem recheado de informação sobre o evento, este documento que incorpora quatro folhas de papel, inclui os lugares onde nos vamos sentar e tudo e tudo, maravilha. Só falta dizer que a estação de metro mais próxima é a Baixa-Chiado.

No entanto, não obstante a validade das tecnologias de facilitamento das nossas atarefadas vidas, comprovada por tantas instâncias em tantas situações, há que ir com antecedência generosa para a fila da bilheteira, exibir as quatro folhas impressas e recolher os bilhetes verdadeiros, autênticos, impressos como deve ser, em tiras esverdeadas com picotados que as ligam umas às outras, quais crianças da UNICEF em roda de mãos dadas, que custaram dinheiro a alguém, e que confirmam o que esta família de papeis que levo na mão, já registam.

Ora o que temos, então, aqui? Um, incapacidade da minha parte para entender o processo instaurado para a compra complicada de bilhetes para a ópera e evitar esta indignação, dois, incapacidade destes senhores de cortar a ligação com o passado e abraçar sem medo as novas formas de fazer compras de bilhetes para a ópera de que gostamos tanto, três, any other business, direis vós.

É que isto, vendo bem as coisas, lembra-me a minha querida avó.

Ela sentava-se junto ao telefone, que era fixo, só havia dos fixos, não fosse alguém ligar, não quer que esperem por ela, as pernas já perderam o vigor de outrora e o corredor lá de casa era comprido.

Isto lembra-me que, em dias felizes, ela atendia a meio do primeiro trimmmm levantando o auscultador do aparelho estacionado na pequena mesa antiga, está?, e falava. E ouvia. E falava. E alguém lhe fazia o dia.

E isto lembra-me que, na meta final do telefonema, a minha avó ia dizendo adeus, adeus, querida, adeus, enquanto baixava gradualmente a intensidade da sua voz morna e se inclinava muito, devagar, acompanhando o auscultador, adeus, filha, adeus, no trajecto descendente, o ouvido ainda colado ao plástico redondo perfurado, adeus, adeus, até chegar ao fim do percurso. Clique.

O auscultador havia premido com firmeza as duas patilhas pretas que, de novo enterradas no chassis do telefone, cortaram a ligação.

Se isto da compra dos bilhetes para a ópera não me lembrasse a minha querida avó no adiar do corte da ligação, no permitir-lhe, à ligação, a pertença ao passado, no deixá-la, à mesma ligação, escorregar para fora do seu presente que, ela sabia, não tardaria a findar, eu diria que a resposta certa é a número um, acima.

Mas como, vendo bem, isto me lembra a minha querida avó, sei que a resposta certa é a número dois.

05/11/2013

Estacionar em espinha

Deito-me tarde quase sempre.

Por causa do fervor de querer esticar o dia para as horas em que já não pertenço senão a mim e o balcão dos meus expedientes já fechou.

Fecho também os olhos e a tontura do sono vem-me abrandar o fervor, num deleite que abraço.

E isto é no momento em que entra na rua o camião do lixo com o estardalhaço habitual, a luz laranja a dançar na minha janela, mesmo assim, sem ver, conheço-lhe a polka.

É camião vigoroso, este da nova frota. Tem flores verdes e tudo, pintadas na sua lateral. São bonitas.

Mas naquelas entranhas mecânicas encaixa o motor que não é daqui, senhores engenheiros. O seu rugir ressona com a caixa, estão a ver? A ouvir estou eu.

Com a caixa, esta, que é a estreiteza dada à rua pelos prédios altos, frente a frente. E a janela, bolas. A janela põe-se louca, transtornada, vibram-lhe os vidros desesperados, chateados com o som que não cabe, chega-te para lá, havia a rua de ser mais larga, e o vizinho do quarto andar podia estacionar em espinha as suas carrinhas Mercedes.

Um dia, se o camião do lixo me partir os vidros da janela enquanto estou a adormecer, ninguém vai acreditar em mim.

02/11/2013

Estaladiças

Conduzo o meu carro pela avenida dos mares, ou o que é, ali na zona da expo, junto ao rio Tejo e quase a chegar à ponte Vasco da Gama, janela do carro aberta, que o outono está lindo e é a minha estação preferida, quando me apercebo de que há algo na rua que me importuna a paz, era isto ontem pela hora do almoço.
O que é, o que é, raios parta, que dia tão lindo e que coisa esta, a minha janela quero-a aberta, em comunhão com o outono, o outono e eu.

Volto a cabeça à direita e vejo um homem envergando um colete verde fluorescente. Vejo um tubo de diâmetro de respeito, de plástico preto, que numa ponta sopra ar e na outra está agarrado a um motor que este homem de colete verde segura como se de um bebé se tratasse. O motor chora baba e ranho, alto e bom som, ou péssimo som, é isto que me irrita a tranquilidade, deve ter fome ou tem a fralda suja.

Mas então paro o carro e concentro-me na pesquisa da pertinência do trabalho deste homem, a minha curiosidade tem certas necessidades. O serviço consiste, observo, em soprar com a barulheira infernal do estupor deste motor que se passeia ao colo, mais valia mil bebés aos gritos, em soprar, repito, folhas outonais, estaladiças, de um castanho torrado, caídas no passeio das vivendas geminadas, a conferir-lhe cor, a contar às vivendas que sim, que o outono já chegou, alegremos os nossos corações, mas não. As folhas estão a ser sopradas para o alcatrão da estrada, todas.

A mim a cena soprou-me para fora dali, que isto é coisas que eu não gosto de ver. Nem de ouvir.

Isto e os saltos altos da vizinha do andar de cima.

01/11/2013

Andorinhas

Há pouco tive um encontro casual tão bonito.

A Agustina Bessa-Luís esteve no ecrã da minha televisão e também deve ter estado nos ecrãs de muitas outras por esse Portugal fora, a ideia é essa, adiante, antes que eu escorregue no meu entusiasmo, ai que se me verte dos dedos, derrama-se pelas teclas do computador, ainda bem que já não se escreve à mão, assim vamos mais depressa e, como dizia, o encontro casual que bonito foi.

Diz a Agustina que lia muito. Que na adolescência preferia ficar a ler em vez de ir a festas com pessoas da sua idade.

E eu, de repente, tocada cá dentro, fundo, Agustina eu também, voei até aos momentos longínquos que vestiram de paz a alma de perguntadora que comigo nasceu.

E aterrei nos fins de tarde das férias de verão da minha adolescência. Sentada à beira da piscina com toda a colecção de literatura que podia encontrar na estante da casa dos meus avós, a nossa casa de férias, sorvia, gulosa, páginas e páginas enquanto havia luz cá fora, na companhia das andorinhas do entardecer que rasavam a superfície da água e a debicavam para matar a sede.

A sede e mais uma porção de microrganismos, devido ao tratamento químico que a referida água oferecia, eram andorinhas com saúde, isso via-se na precisão do voo rasante.

Ler, como a Agustina lia, como eu lia, como o meu querido leitor ou a minha querida leitora agora me lê, que isto tem de ser justo, ler é ouvir um silêncio.

Escrever, como ela escreve, como eu estou agora mesmo a fazer, que não fico de fora da metáfora, cada um trincha o frango com a ferramenta que tem, escrever é falar em silêncio.

Falar para alguém que, depois, vem ouvir.

Não importa se vem pouco depois ou muito depois.

A palavra escrita nasce e instala-se fora da corrente do tempo, onde a morte não a pode encontrar.

Deve ser por isso que a paz mora aí.