a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/10/2013

O elefante

Tinha quatro anos de idade e era o dia em que a minha mãe me ia levar ao jardim zoológico.

Seguíamos no seu Fiat 127 cuja matrícula ainda sei e que muito mais tarde foi roubado do parque de estacionamento de Algés. Nunca mais voltou.

Cá vamos, então, no Fiat, Campo Grande fora. O primeiro destino é a casa da amiga da minha mãe cujo nome esqueci (memorizar matrículas é que eu faço bem) e que tem uma filha da minha idade.

Ora neste feliz dia vamos todas, as quatro, visitar o jardim dos animais, local mágico, aonde eu estalo de vontade de ir, mas que hoje me amedronta porque, mãe, disseste que vamos andar no elefante, disseste? E se ele não quer?

- Quer, filha. Mas antes de chegarmos a casa da Ana (acabo de a baptizar, Ana serve muito bem), tira a pastilha elástica da boca, para não ires a mascar, que é muito feio.

Obediente, que a minha mãe é que manda, tiro a pastilha da boca e, como não vi, dentro do carro, depósito apropriado, fica a pastilha encolhida na minha mão esquerda, fechada, só até sair e encontrar um caixote do lixo. E entretanto pensava no elefante, ele é tão grande, será que vou cair?

Chegamos à porta da Ana, mas não houve tempo de sair e procurar o desejado caixote, a pastilha fica aqui mais um bocado, muito sossegadinha na minha mão e já deve ter adormecido, porque me parece que está espalmada.

Entra a Ana no carro e então, efusivamente, olá Susana, que crescida, dá cá um beijinho, e tal, aquelas coisas que me enervam, principalmente com isto na mão, se tivesse demorado mais um bocadinho, eu tinha saído e procurado o lixo, e o medo do elefante, crescida eu?

A outra miúda instalou-se a meu lado, também não é nada crescida, tem é cá uns olhos curiosos, espero que não saiba do que tenho escondido na mão. Olá, disse-lhe eu.

Dali ao jardim dos elefantes foi um salto e, finalmente, estou fora do carro.

Entramos nos portões de Sete Rios e avisto o desejado cilindro esverdeado-sujo, feito em rede metálica, salvo erro, a olhar para mim. Detenho-me junto dele e disfarçadamente abro a mão mesmo por cima do círculo aberto ao céu, que alívio vai ser, deixar o rejeitado pedaço de goma mascada cair lá para dentro.

Mas ela não cai. Que coisa, a pastilha espreguiçou-se e agora não sai, está agarrada, colada à minha mão, acinzentada e suja, ai, como se faz para deitar isto fora, tenho que raspar, mas se calhar cola-se à outra mão, é melhor não mexer.

- Anda lá Susana, anda!

Fecho a mão e corro para as apanhar não vá verem esta porcaria, que vergonha. Não posso dizer nada, não quero deixar a minha mãe ficar mal perante a amiga e a outra petiza que é muito curiosa, já sabemos que pastilhas é feio. Agarro com a minha mão direita a mão da minha mãe, porto seguro, talvez daqui ela me consiga ouvir o segredo se eu lho contar baixinho, mas não pode ser, a miúda não se afasta, vai ouvir tudo.

- Vamos andar de elefante? - pergunta ela, ansiosa.

Resposta positiva, entusiasmada, das mães em uníssono. Vem a miúda a correr pôr-se ao meu lado e tenta agarrar na minha mão esquerda para sermos duas crianças felizes a saltitar em vez de uma criança feliz a saltitar e uma criança infeliz agarrada à mãe, com um problema na mão e medo do elefante.

- Esta mão não se pode abrir - digo eu.
- Ai não? Porquê?
- Porque tem um segredo.

Ah, um segredo na mão. A outra menina parou de saltitar e caminha agora ao meu lado, a curiosidade ainda lá está, a avaliar pelos olhares de soslaio que me deita à mão, mas a admiração é mais evidente. Um segredo na mão!

- Ó mãe, eu também sou crescida, não sou? - oiço-a dizer, enquanto me concentro a pensar que desculpa arranjo para não subir ao elefante com uma mão a menos para me segurar.
- Claro que sim, querida.
- E as crescidas podem ter segredos, não podem?
- Hum? Podem...

Depois, olhos no chão, voz fininha, desanimada, confessa:

- É que eu também tenho um segredo... tenho medo de andar no elefante.

Sem comentários:

Enviar um comentário