a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/09/2013

Café pingado

Se não fosse eu ter-me metido a fazer um blogue, havia coisas que iriam comigo para a cova, nem os meus mais recônditos botões saberiam.

Como isto. Ontem à tarde, a meio da tarde de trabalho, levantei-me decidida a tomar um café pingado. Coisa inédita no meu rol de bebidas, café pingado.

O que me levou a cometer esta loucura desvairada, foi a vontade de tomar mais tempo a beber o líquido e assim prolongar a pausa, visto que o café pingado, pelo nome, promete comportar mais quantidade que o café normal.

Ora tenho a anunciar aqui, neste veículo informativo, que o café pingado da máquina do andar de baixo lá da empresa é mau. Muito mau.

Ainda tentei um segundo golo, cauteloso, deve ser de mim, é castigo por querer pausar por mais tempo, vai mas é trabalhar. Credo.

Confirma-se, este café pingado tem sabor a banha de porco podre.

Certifiquei-me de que ninguém assistia à mutação que se operou em mim, terei esverdeado por momentos, bolhas lilases ter-se-ão libertado dos meus cabelos, as tremuras que me subiram pela espinha terão terminado a enegrecer-me as unhas, ou coisa assim, quem te mandou, e deitei o resto da bebida fora. Às escondidas. Depois, de cabeça erguida, voltei para de onde não devia ter saído.

Ao regressar a casa no final do dia, ainda agoniada, admirada com o poder intoxicante do pedaço de leite em pó que pingou o café, dou de caras, como todos os dias por esta hora, com os painéis publicitários tamanho descomunal, horrendos, que se postam à entrada do meu bairro, tapando-me a visão.

É que eu quero ver as flores dos canteiros, as senhoras que puxam os carrinhos de compras com os alhos franceses a sobrar, que nunca cabem, de compridos que são, os rapazes a passear os cães, as meninas com a mochila nova às costas, de mão dada com a mãe, a saltitar daquela maneira que só elas sabem, o sol do fim da tarde a meter-se por entre as folhas que ainda não caíram das árvores. Mas não, o cenário deplorável dos cartazes é que me enche os olhos, me fere, me entristece. Porque me fazem isto, seus energúmenos?

Há lá no entanto um cartaz com o qual eu simpatizo um pouco. Porque posso zombar dele. Porque confirma a inutilidade da sua existência imbecil e da dos outros todos, poluentes do espaço. Esse, envergonhado, infeliz, desgraçado, desbotado pelo sol implacável que cruzou este verão, bem feita, esse, diz desesperadamente, há meses, "Anuncie aqui".

Que vergonha.

Se pensam que vou lá anunciar a qualidade do meu café pingado, se pensam, podem tirar o cavalinho da chuva.

É assunto privado e iria comigo para a cova se eu não tivesse um blogue.

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