a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

06/08/2013

Tempestade

Caíu o primeiro pingo de chuva. Grosso e anafado.

As nuvens densas que se avistavam ao longe parecem agora mais perto.

É quase noite e nós temos o barco atracado junto ao prado onde as ovelhas há pouco não paravam de comer.

Não se vê mais ninguém por aqui. Do lado de lá da fileira de árvores que se avistam daqui, passa o comboio local a cada onze minutos. Ora num sentido ora no outro. Desconfio que não tem condutor.

O moínho típico desta paisagem, que marca a curva do canal de água, ali à frente, tem a silhueta de breu recortada contra o que resta do céu mal iluminado. E vestido agora de nuvens negras.

Reforçámos os cabos que prendem o barco a terra. Vai ser forte.

E enfim começou. O espectáculo de luz branca e som. Primeiro o relâmpago, que é dos modernos, luz de led, para poupar energia. Tão branca, insípida, feia.

Alguns segundos depois o rugir do trovão, irritado com aquilo do led. Eu também não gosto nada desta moda, mas tenho de poupar.

Novo relâmpago led e novo trovão. Desta vez irritou-se mais depressa, o barulhento.

A coisa está-se a chegar para cá.

A chuva começa a cair com uma fúria que aumenta de intensidade a cada momento.

O vento também se juntou à festa e está a agitar a água do canal. Muito.

Estamos dentro do barco, o ipod do Erik toca o Erroll Garner para nós. As notas do piano enchem o espaço, mas são engolidas pelo barulho que a chuva faz a bater no deck, nos vidros, na capota de plástico. 

A chuva, os trovões, a música do Erroll Garner de há quatro décadas, que festa de contrastes. O barco, no entanto, está contente. Dança dança dança.

Lá fora os corpos esbranquiçados das ovelhas estão atarrachados ao chão que estiveram a comer antes de se instalar a escuridão. Alternada pela luz led, potente, da tempestade.

Os relâmpagos sucedem-se uns aos outros em disputa psicadélica, eu cá nunca vi nada assim. Disputa que nenhum ganha, porque afinal todos foram à mesma loja comprar as lâmpadas,  que falta de gosto.

A pizzaria lá do bairro onde vivo, em Lisboa, também tem esta iluminação branquela no tecto.   

As pizzas são boas, mas só ao almoço. A essa hora o led do tecto, ainda que em desenvolvimentos design, reconheço, está apagado. As janelas altas para a rua, felizmente, fazem um bom trabalho.

Agora já sei. Se um dia lá for jantar entro a rugir, como fazem os trovões. Para mostrar que aquilo me irrita.

Entretanto, com a conversa, os relâmpagos fizeram as pazes. Acabou-se a festa psicadélica. Os rugidos não os oiço. O barco já não dança, a chuva também parou. 

Gosto tanto do Erroll Garner. Pena não fazer o barco dançar.

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