a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

07/07/2013

Ecrã total

Passou-se comigo, vou contar.

Sou mãe há uma data de anos. Quando me lancei nesta actividade complexa, diversificada e altamente desafiante, li todos os manuais para bons pais que consegui encontrar. Empenhei-me a fundo em ser o melhor possível como mãe.

Uma das regras que encontrei nos meus manuais manda besuntar os filhos, em tempo de praia, com protector solar factor oitocentos e trinta e um, ou em alternativa um que tenha índice de protecção o mais alto possível. E, regra de ouro, levar a operação a cabo antes de sair de casa, para que, ao chegar à praia, a pele sensível dos petizes já esteja totalmente blindada.

Assim eu fazia sempre que não me esquecia. Muitas foram as vezes que lhes esfreguei braços, pernas e tudo já em cima da areia, envergonhada da minha falha.

As minhas miúdas nunca adoraram o processo. Se o fizesse na praia ainda era pior, porque aí apanhava-as já com o frenesim de se atirarem para dentro de água, coisa muito urgente.

Naquele dia, estavam elas com dez e sete anos de idade, fui exemplar e besuntei-as em casa. As miúdas ficavam acinzentadas depois disto e, na minha imaginação, com algumas dificuldades motoras, tão espessa era a camada protectora. Continuo a desconfiar que tem um certo teor de pasta de cimento na composição.

Naquele dia, dizia eu, fiz tudo certinho. Depois da sessão gordurosa, lavei as mãos, coloquei as lentes de contacto nos meus olhos, e rumámos a Sesimbra.

Ia eu tão feliz ao volante quando me dei conta de que via a estrada do lado esquerdo ligeiramente turva. Pestanejei diversas vezes, bocejei para conseguir humedecer os olhos (estás com sono, mãe? não, filha), mas a estrada continuava turva deste lado. E para mais ardia-me o olho.

Bonito serviço, visto que o dia de praia estava por começar e eu não tinha lido manuais para pessoas que usam lentes de contacto e que devem-sempre-ter-consigo-um-kit-emergência, não vá o diabo tecê-las.

Teceu-as.

Cheguei à praia com o olho todo vermelho e quase fechado, a chorar. Estacionei. Peguei na lancheira com o almoço, no cesto das toalhas, no chapéu de sol e nas mãos das minhas filhas e cá vamos nós rua abaixo até à praia.

Pus a tralha no chão, estendemos as toalhas, o chapéu de sol ficou fechado por enquanto, recomendei-lhes que não se mexessem dali, que a mãe vai num instantinho à farmácia tratar deste olho, está bem?

Corri na direcção da cruz verde que indicava a existência maravilhosa de uma farmácia na rua da praia e entrei a chorar do olho esquerdo. O meu olho tinha sido vítima do manuseamento do protector solar e de uma lavagem insuficiente das mãos. Consegui retirar as lentes, colocá-las no líquido que comprei e no qual tinham de ficar umas quatro horas no mínimo.

A minha miopia não é ligeira e quando me dirigi de novo à praia, constatei que não era capaz de encontrar as minhas filhas, a não ser dali a quatro horas após recolocar as lentes.

Não entrei em pânico. Abeirei-me do paredão que separa a estrada da areia e procurei pela combinação de cores que eu sabia que as nossas toalhas, que eu tinha estendido, faziam. Felizmente as crianças não as tinham movido e não demorei muito a encontrá-las.

Disse-lhes: agora a mãe não vê nada durante quatro horas e por isso vocês não podem sair de perto de mim, combinado? Elas muito impressionadas com o meu olho que ainda está vermelho e chora. Respeitam muito uma mãe que chora, as crianças.

Pronta para começar a saborear o dia, pus o pé em cima de uma abelha que estava pousada na minha toalha amarelo limão. A abelha desconhecia a minha falta de acuidade visual para a detectar e evitar o accionamento do seu potente ferrão. Doeu.

Condoídas com o meu olho, a falta de visão e agora o pé com aquela dor que só quem já experimentou sabe, as minhas filhas portaram-se como anjinhos. Nem falaram em ir ao banho.

Passadas as quatro horas e mais um pouco, para ter a certeza, retomei o meu poder de visão, com as lentes recuperadas do protector solar ecrã total e regressámos a casa sem mais aventuras.


Aos autores de manuais para pais exemplares, solicito que acrescentem duas regras à lista:

1. Pais, façam-se sempre acompanhar de um kit-emergência para lentes de contacto, são muito eficazes na prevenção contra ferroadas de abelhas;
2. Após besuntar os filhos com protector solar ecrã total, não esquecer de lavar as mãos como se tivesse medo de apanhar gripe A.

Agradecimentos: à minha irmã Ana, que conseguia ter os filhos mais acinzentados de toda a praia.

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