a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/06/2013

Silvina

Silvina é uma mulher preta, grande, musculada, anda pelos quarenta. Nasceu em S. Tomé.

E trabalha nas limpezas lá do escritório.

Diz boa tarde a toda a gente e serve sempre (sempre!) o cumprimento com um sorriso de orelha a orelha, aquilo vem-lhe mesmo da alma. E mostra os dentes branquinhos que tem.

Por vezes anda a cantarolar enquanto lava o chão. Assim que apanha alguém fora, invade a sala vazia e esfrega ainda mais, fica tudo a brilhar e a cheirar bem. Eu digo-lhe "Até amanhã, Silvina, cheira aqui tão bem!" e ela ri-se.

A bata de trabalho que a empresa das limpezas lhe dá para vestir é azul turquesa. Silvina deve gostar da cor, porque a combina com as outras que falam na mesma língua ou em frequências da mesma família, para o efeito tanto faz.
Hoje tinha uma camisola rosa vivo, que veste por baixo da bata. As socas de borracha que trazia são verde bandeira e as luvas, também de borracha, amarelo limão.

É a pessoa mais colorida lá do escritório. É também a mais simpática, a que mais gosto de cumprimentar.

A Silvina não perde o sorriso. Até agora nunca aconteceu.

Nem mesmo quando a filha não obteve o visto para vir a Portugal.

- Não vê a sua filha há quanto tempo, Silvina? - nós queremos saber.

- Há quatro anos. Mas ela vem, ela vem. (E sorri outra vez, e é com a alma que sorri).

Um dia a Silvina trazia, dependurados dos seus ouvidos, os fios brancos de dois auriculares. E meneava ligeiramente a cabeça enquanto mudava o saco do lixo do caixote que está no corredor de cima. Não resisti.

Perguntei-lhe que música ouvia.

- É uma música que eu gosto - disse-me ela a rir, como se a minha pergunta fosse absurda.

No dia seguinte, fiz-lhe outra (eu preciso de saber porque sorri ela assim). Perguntei-lhe pela filha.

- Chegou ontem!- e o sorriso da Silvina reflectiu-se no chão impecavelmente limpo, brilhante. Os olhos dela também brilhavam. Largou a esfregona e sacou de uma foto do bolso da bata azul turquesa, mostrou-me a "sua princesa". Bela moça, Silvina.

Fiquei mesmo feliz com isto. Afinal o visto tinha sido passado, depois de várias tentativas.

Acho que ela nos limpa um pouco a todos, também. Limpa-nos de tristezas. Enquanto recebemos o seu cumprimento com tão generoso sorriso, esquecemo-nos que os nossos filhos não fizeram exame porque os professores estão em greve e o país está doente.

A filha da Silvina também não fez exame, não andou na escola para poder fazer exame. Mas está cá, perto dela. E a Silvina gosta da música que ouve enquanto tira o lixo do corredor lá de cima.

É tão bonita, a Silvina.

Apetece-me oferecer-lhe uma música que ela goste. Esta, por exemplo. Se calhar até já a conhece.


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