a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/05/2013

Amanhã dão sol

Enquanto esperava que acordasses, sentei-me a uma mesa da sala de espera, no quinto andar do hospital. Sentei-me à janela, claro, junto à chuva. Adoro chuva, tal como tu.

Colei os olhos ao escorrer lento de uma gota que descia, do outro lado do vidro.

Lá em baixo, na rua, as pessoas passam. Algumas saem, outras entram pela porta giratória, dentro da qual o ar nos começa a aclimatar antes de nos lançar no interior luminoso do átrio. Ou na chuva que cai lá fora.

Aquelas duas mulheres que agora saíram embrulhadas nas suas vestes muçulmanas, não parecem estranhar esta chuva fria. Há quanto tempo aqui vivem? Quem vieram elas visitar? Que história é a sua?

Ali vem um homem novo, alto, apressado. Traz um balão metalizado, cor-de-rosa, com uma cegonha impressa, que assim à chuva brilha mais, como é possível alguém não gostar de chuva? Esse vem tão feliz nas suas passadas enormes!

E aquele senhor de cabelo branco, menos apressado, os seus filhos já terão nascido há muito, traz um vaso com flores também, claro, mais brilhantes. A chuva não descrimina.

Não, ninguém aqui está ou vem indiferente. Será por isso que o café da máquina ao canto do corredor é tão mau e ninguém parece importar-se?

Estou à espera que acordes. E esperava chegar aqui, sentar-me e carregar um fado enegrecido até te ver voltar a sorrir. Mas não é fado assim o que carrego, tenho de te dizer.

Sinto-me perto do céu e não é por estar num quinto andar e daqui ver a floresta que se estende ali à frente.

É toda esta energia que entra e sai do edifício, que passa no corredor, que cumprimenta e sorri e caminha apressada com flores e balões, é toda esta energia que me habita agora e que me faz sentir assim. Eu também não esperava isto.

A prova de amor alheio, aqui, em mil pedaços. É disto que te falo. Não ouves a ode que juntos compõem? É a mais bonita de todas. Esta não a tocam no Concertgebouw. É aqui que a tocam.

Quando acordares vais sorrir e dar-me um beijo, eu sei. Depois dás-me a mão e dizes vamos tomar café. E eu vou. Não me importo que seja este do canto do corredor.

Uma nova gota, recém-chegada ao vidro, está agora a descer.

Se algum dia me esquecer de como é a Humanidade, volto aqui. Mesmo que não esteja a chover.

Olha, encontrei esta foto no jornal. Diz que amanhã dão sol.

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