a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/04/2013

Leite entornado

Eu já escrevi sobre elas, aquelas manhãs sem fim na fila de trânsito sentido Cascais Lisboa.

Filas nas quais os motores dos automóveis seguiam pouco mais que estacionados, numa dormência que não conhecia descanso.

As crianças, alheias ao facto de os carros terem sido feitos para rolar a velocidades diferentes, iam bebendo o leite a saber a plástico, de tanto o copo o transportar, manhã após manhã, pára após arranca.

Era de esperar, o resultado. O buraco da 24 de Julho estava lá e normalmente não falhava o pneu do meu carro.

Leite no chão. Nas roupas das miúdas também (era o menos), nos bancos delas (eram laváveis). Mas no chão, ai. Na alcatifa do automóvel. Local perfeito para todas as colónias de bactérias de que a Natureza se lembrasse por aqueles dias - ainda longe de tamanha crise - de criar.

A meio do Verão começou a ser difícil entrar no carro.

Mas como era Verão, as janelas iam bem abertas. Ajudavam a suportar o leite estragado e o consequente cheiro em proliferação. Porque não lhes dei o leite em casa? Porque não me levantava eu mais cedo? Porque havia de fazer tudo sempre à pressa? argh!

Teve mesmo de ser: chegou o sábado em que deixei a vergonha em casa. Fechei-a no cofre, não fosse lembrar-se de sair pela janela, voltando a encaixar-se em mim antes de eu lá chegar.

Guiei até ao centro comercial do bairro, onde uma comitiva de brasileiros descontraídos e simpáticos estava à disposição, por doze euros, para fazer a limpeza interior e exterior do veículo. O meu pequeno automóvel implorava por isso e o meu nariz tinha-se juntado ao grupo.

Estacionei perto do local das lavagens, mas não muito, por segurança. Havia que manter os benfeitores na ignorância quanto ao estado da situação. Por enquanto.

Desenrolei-me, saí e fechei a porta rapidamente. Um dos trabalhadores já caminhava na minha direcção, sujo, descontraído e sorridente. A parte do sujo relaxou-me. Talvez a coisa passasse despercebida.

- "Bôa tardji, sióra!", saudou, cordial.

Boa tarde e estendi-lhe a chave, com os olhos baixos, deliberadamente ocupados, à procura de qualquer coisa que os meus sapatos haviam certamente pontapeado. Ou talvez uma imperfeição do solo liso da garagem.

Era para fazer a limpeza completa, dentro e fora, por favor. Quanto tempo demora?

- "Duais horais, sióra. Vai ficá bêlêza, viu?"

Duas horas e algumas lojas depois, eu voltei.

Concentrada em mostrar-me desligada do assunto, de qualquer assunto, e a invocar esperançada a imagem sempre descontraída da comunidade brasileira, avancei, agora quase confiante, para retomar o meu carro. Limpo e respirável de novo.

Lá estava ele, sorridente, com a minha chave na mão. Ufa. O rapaz não notou nada, a minha confiança reapareceu. Talvez seja prática corrente, afinal. Copos de plástico com leite em mãos de quatro e seis anos, filas de trânsito, buracos na estrada, sono e pressa em mistura explosiva, leite entornado. Afinal, as filas tinham muitos mais contribuintes, eu não as fazia sozinha. Ah, ele não notou. Alívio. Cabeça erguida. Também sorri.

- "Ô sióra!..."

Ai.

- "Ô sióra!... Foi barra pêsada entraí, viu?"


Pois foi. Foi para ele e para mim.

Foi barra pesada passar a acordar mais cedo e dar o leite às crianças em casa, por prevenção.

Foi barra pesada, mas quando o Verão acabou voltámos a circular de janelas fechadas.

E eu não mais precisei de fechar a vergonha em casa.

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