a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

16/04/2013

Esteticista

Em pleno exercício das minhas funções de mulher, tinha marcado para aquele sábado de manhã a visita à esteticista. A ideia era libertar-me dos muitos centímetros de pilosidade que habitavam a minha pele e regressar ao estado admissível de isenta, tão bom. De pelos, claro.

A esteticista tinha gabinete no cabeleireiro do centro comercial lá do bairro.

Nesse dia não tive escolha e levei a Ritinha comigo, que observou todo o arrancamento do princípio ao fim com muita atenção. Os seus olhos, testemunhas jovens da passagem de apenas quatro primaveras, pareciam horrorizados. Mas não fez perguntas. Olhava para mim de vez em quando, revelando pesar e solidariedade no seu inexperiente semblante.

Já fora do gabinete de estética, sinto aquele alívio a invadir-me, que leveza. Não sem, no entanto, vir acompanhado do habitual ardor - hoje está mais forte, não está? - no pedaço de pele que se situa acima do lábio superior e só termina no nariz. Decidi então oferecer a mim mesma o prémio merecido: um café.

Era sábado, repito, dez horas da manhã. A zona da restauração, local apenas aprazível quando serve de cenário à degustação do recente alívio que eu sentia e ia sentar-me a saborear, estava praticamente deserta. Algumas lojas em redor já abertas, outras a abrir. Fazer parte deste renascer fez-me quase esquecer o ardor.

Fui buscar o café com um ligeiro disfarçar de mão a tapar a vermelhidão, e sentei-me a uma mesa com a Ritinha. Não, hoje não compro bolos, anunciei, satisfeita por ter resistido àquele tremelique do olho direito, técnica que ela usava para me dobrar. Não insistiu, não queria torturar-me mais, ainda estava impressionada com o que me tinham feito.

- Temos de ir para casa, preciso de pôr gelo aqui, está a arder, disse eu, com a mão a tocar ao de leve, para sentir a vermelhidão imaginada.

A Ritinha levantou-se de um salto e correu para o local de onde tinha vindo o meu café e, em bicos de pés e dedos espremidos a contornar o bordo do balcão de pedra, a escorregar, cabeça espetada, os caracóis pendurados nas costas, dizia coisas à empregada. Explicava, explicava, a Ritinha. Eu ouvia-lhe a vozinha aguda mas não lhe distinguia as palavras.

Quando finalmente percebeu o que aquela menina toda esticada, de quem só certamente via a testa e os olhos, pretendia, a empregada olhou para mim fixamente. Não lhe percebi a expressão, porque estava demasiado longe para isso. Mas durou, o momento que a empregada do café tomou para me escrutinar, durou. Depois virou-se para a Ritinha e explicou também ela qualquer coisa.

As mãos largaram o balcão, os pés regressaram ao contacto integral com o chão e a Ritinha um pouco desapontada voltou a correr para junto de mim.

- Temos de ir para casa, mãe. A senhora disse que a máquina está a aquecer e ainda não tem gelo.

Não tenho a certeza se para ela "aquecer" e "gelo" constituíram uma contradição. Pelo menos não desencadeou pergunta.

- O que foste tu dizer à senhora, Ritinha?

- Que o teu bigode está a arder, mãe.

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