a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/04/2013

Artur e Panpan

Ontem fiz a viagem Amesterdão Lisboa num lugar encantado dentro do avião, ao lado deles.

Ambos exibiam o colar de plástico com a bolsa dependurada, guardiã dos seus documentos de transporte. Dois meninos que viajavam sozinhos e se cruzaram no meu caminho. E juntos cruzámos o céu.

Artur tem sete anos e queria saber se já podia usar manga curta quando chegasse a Portugal. Tinha passado as férias da Páscoa na companhia da mãe, que se tinha mudado há muito tempo, assegurou ele, para a Holanda. Viajava agora de regresso para junto do pai.

Panpan nasceu na China, longe de Xangai e perto fiquei-por-saber-de-onde, há dez anos. Vive há cinco em Portugal e também tinha ido de férias à Holanda. Para casa de um primo. Tinha as mãos ocupadas a jogar gameboy e falava sem tirar os olhos do jogo.

Ainda no chão, no aeroporto molhado e sombrio de Amesterdão, já tínhamos iniciado a amizade. Perguntaram-me quando começaria o avião a andar muito depressa.
Eu disse-lhes que iam sentir uma força a empurrar-lhes o corpo contra as costas da cadeira, e então iam perceber a velocidade. Eles não acreditaram e fizemos uma aposta.

Quando chegou o momento da aceleração em pista, ambos mantiveram-se triunfantes afastados do banco (não sem um cerrar de olhos e de dentes, em esforço) para me provarem que eu estava errada. Não havia força nenhuma.

Ganharam. A força tinha-se esquecido deles, eu bem vi!

Já acima das nuvens, o Panpan ia lançado nas suas divagações sobre a vida e fui então informada que o seu sonho é ir a Londres. Se eu já lá tinha ido? Sim, umas três vezes, talvez, ou quatro. Como é possível tantas, perguntavam os olhos amendoados desviados do gameboy por um instante.
É possível, porque eu sou muito mais velha do que tu.
E que idade tens?, pergunta o Panpan.
81, sugeriu o Artur. Não, corrigiu, 90 (deve ter visto os meus olhos arregalados de espanto, mas interpretou ao contrário). Tens 32, decidiu o mais velho. Está melhor, embora...

Há lá aquele relógio, continuava o menino do gameboy, mais uma vez sem tirar os olhos do jogo. É aquele relógio muito importante, sabes?
O Big Ben, sugeri.
Sim sim!! É esse! Ahhhh eu queria tanto ir a Londres! O livro que eu mais gostei de ler é do Sherlock Holmes e acontece tudo em Londres. Mas eu também queria entrar nos desenhos animados e ficar lá. O mundo nos desenhos animados é muito melhor. E também quero ser presidente da China e da América, rematou enquanto subia de nível no gameboy.

E depois perguntou-me se eu também tinha um sonho.

Tenho. Mas não lho contei. Nem ele quis saber qual é o meu sonho, o gameboy exigia agora toda a sua atenção. 

E tu, Artur?

Eu sonhei que um elefante com cauda de dinossauro e dentes de tubarão e pés de galinha gigantes corria atrás de mim e me queria apanhar. Mas depois acordei. E também tive outro sonho com uma vaca que também me queria apanhar e que também tinha pés de elefante e asas de dragão. Umas asas assim muito pequeninas, estás a ver? a posição das mãos a acenar junto às axilas do Artur demonstrava as asas do dragão. Sim, estou a ver.

A conversa continuou dentro dos mundos encantados deles e eu encantada com eles.

Começámos a descer. A ideia de nunca mais os ver depois de abandonar o avião começou a doer-me.

Aterrámos. A hospedeira veio dizer-lhes para esperarem nos seus lugares até toda a gente sair. Quando me levantei para me ir embora, estendi-lhes a mão e despedi-me. Adeus. Desejei-lhes felicidades.
O Artur perguntou-me se eu ia chorar. Não, não vou chorar.

Mas fiquei a saber que a mãe dele chorou quando o entregou no aeroporto umas horas antes.

Se eu pudesse, dizia-lhe que os sonhos do seu filho foram ouvidos pelos anjos lá em cima. E que os anjos cuidam dos meninos que contam os sonhos acima das nuvens. Meninos com os olhos grandes do Artur e os olhos rasgados do Panpan.

Se o Panpan tivesse insistido, teria ficado a saber que o meu sonho é este.

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