a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/04/2013

A banda passou

Terminei o trabalho. Pude, finalmente, respirar com as costas encostadas na cadeira e o sentimento de alívio a fazer parte da minha semana. Perdão, do mês.

Arrumei os restos do turbilhão de tarefas que por aqui passaram; foram as minhas mãos a fazer isto? Arrumei tudo, fechei a pasta, a física, a electrónica, abri o armário, meti lá a pasta, fechei-o também.

Voltei à cadeira e ao contacto com o seu encosto que é macio e eu já não me lembrava. Ajeitei os objectos remanescentes, damas de companhia destes meus dias tristes. Presságio de melhores momentos, talvez.

Percorro a lista das tarefas, que cresceu muito nas últimas semanas, abandonei-a, pois foi. Tudo isto a andar e entra o meu colega Bruno. Há séculos que não o via, nem parava um pedaço para dois dedos de conversa, agora é que vai ser.

Como estás, eu estou bem, eu também, há quanto tempo, é verdade.

Falou-me das novidades da sua paixão, que eu já conhecia, a fotografia. E eu ouvi. Comecei a ouvi-lo com as costas, as minhas, nas da cadeira, macias. Do fundo do meu cansaço construído a martelo, pesavam as semanas árduas no infinito de mim.

O Bruno falava e, devagar, a cada detalhe fotografado, trouxe-me de regresso à superfície do razoável. Descreveu cada movimento que para sempre ficou suspenso, aprisionou, e agora faz parte da sua colecção aprimorada; mas que fotos! O entusiasmo dele flui pela sala. Corta o cenário insípido de batalha acabada de ganhar, apesar de tudo.

Ele não notou. A minha contribuição de ouvinte agradecida era desajeitada, mas genuína. E o Bruno, felizmente, continuou. Noite adentro, fica ele a preparar as cinco imagens que cria diariamente. Quando pode, claro. E se não pode, mal lhe resiste. Bonita paixão, Bruno.

No fim, pediu desculpa por me empatar e saiu.

Não empatou nada, nadinha.

Desempatou-me, isso sim. Este nó em dó que teci por mim à medida das visitas que tenho tido das trevas; paixões? não as vi.

E cá está ele. Agora que o Bruno saiu e ficámos sozinhos, cá está o Sol a tocar-me o rosto para de novo me dizer aquilo.

Mas aquilo o quê? Há anos que tento descobrir o que o Sol me quer dizer. Agora vem todos os dias à mesma hora, passa o seu raio comprido pelo interstício das arquitecturas do edifício que já disse ser insípido, ai tanto que é!, e vem conversar comigo aqui na sala da cave. Mas só fica os minutos que a Terra giratória lhe permite. Deve ser ciúmes, o que a Terra tem.

Vou continuar à procura. E enquanto procuro, agradeço a visita ao Bruno. Agora é a minha vez de pôr a banda a tocar.


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