a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/04/2013

A banda passou

Terminei o trabalho. Pude, finalmente, respirar com as costas encostadas na cadeira e o sentimento de alívio a fazer parte da minha semana. Perdão, do mês.

Arrumei os restos do turbilhão de tarefas que por aqui passaram; foram as minhas mãos a fazer isto? Arrumei tudo, fechei a pasta, a física, a electrónica, abri o armário, meti lá a pasta, fechei-o também.

Voltei à cadeira e ao contacto com o seu encosto que é macio e eu já não me lembrava. Ajeitei os objectos remanescentes, damas de companhia destes meus dias tristes. Presságio de melhores momentos, talvez.

Percorro a lista das tarefas, que cresceu muito nas últimas semanas, abandonei-a, pois foi. Tudo isto a andar e entra o meu colega Bruno. Há séculos que não o via, nem parava um pedaço para dois dedos de conversa, agora é que vai ser.

Como estás, eu estou bem, eu também, há quanto tempo, é verdade.

Falou-me das novidades da sua paixão, que eu já conhecia, a fotografia. E eu ouvi. Comecei a ouvi-lo com as costas, as minhas, nas da cadeira, macias. Do fundo do meu cansaço construído a martelo, pesavam as semanas árduas no infinito de mim.

O Bruno falava e, devagar, a cada detalhe fotografado, trouxe-me de regresso à superfície do razoável. Descreveu cada movimento que para sempre ficou suspenso, aprisionou, e agora faz parte da sua colecção aprimorada; mas que fotos! O entusiasmo dele flui pela sala. Corta o cenário insípido de batalha acabada de ganhar, apesar de tudo.

Ele não notou. A minha contribuição de ouvinte agradecida era desajeitada, mas genuína. E o Bruno, felizmente, continuou. Noite adentro, fica ele a preparar as cinco imagens que cria diariamente. Quando pode, claro. E se não pode, mal lhe resiste. Bonita paixão, Bruno.

No fim, pediu desculpa por me empatar e saiu.

Não empatou nada, nadinha.

Desempatou-me, isso sim. Este nó em dó que teci por mim à medida das visitas que tenho tido das trevas; paixões? não as vi.

E cá está ele. Agora que o Bruno saiu e ficámos sozinhos, cá está o Sol a tocar-me o rosto para de novo me dizer aquilo.

Mas aquilo o quê? Há anos que tento descobrir o que o Sol me quer dizer. Agora vem todos os dias à mesma hora, passa o seu raio comprido pelo interstício das arquitecturas do edifício que já disse ser insípido, ai tanto que é!, e vem conversar comigo aqui na sala da cave. Mas só fica os minutos que a Terra giratória lhe permite. Deve ser ciúmes, o que a Terra tem.

Vou continuar à procura. E enquanto procuro, agradeço a visita ao Bruno. Agora é a minha vez de pôr a banda a tocar.


27/04/2013

Fado na praia

Combinámos sair de Lisboa às oito horas daquele Sábado de Julho. A Marina levava o carro e eu levava o almoço para as duas, era o acordo. Rumámos direito ao Sul. Queríamos chegar à praia antes de a areia se ter libertado das sombras que se quedam, lânguidas, no fresco macio, enquanto o Sol se espreguiça.

Depois da autoestrada, seguimos pela via secundária. O percurso tem, aqui e ali, casais de cegonhas que ainda não levantaram voo para a caça do dia. Os ninhos estão todos ocupados e eu tenho vontade de inventar um poema, acontece-me sempre que passo por aqui.

Para trás fica o museu do arroz, não o vejo, mas lembro-me bem de lá ter estado, há quanto tempo foi?

À nossa frente a estrada desenrola-se, os ramos das árvores que a ladeiam projectam as suas sombras no asfalto.

O poema está mesmo a querer brotar, mas o terreno que eu sou não é fértil. Devia ser fácil fazer rimar sombras com... com quê? Com cegonhas? Nada. Não sai. E um poema nem tem de rimar, pois não?

Na verdade, não me importo. Quero sentir a areia a meter-se-me entre os dedos dos pés e deitar os olhos naquele azul que me lembro ter três tons.

Amo tanto o meu Portugal! Pedaço de beleza que remata a Europa do lado de cá, com o pesponto desenhado na praia. Já sei porque o fado escolheu nascer português. É para ser cantado à beira mar e assim purgar as tristezas lusas, reduzi-las a cinzas deitadas ao azul sem fim. E sem ninguém ver.

O parque de estacionamento já estava ali, a pulsar de lugares vazios. E finalmente o abrandar do motor arrancou-me ao meu poema, antes mesmo de o ter começado.

A maré estava baixa e não se via quase ninguém. O areal é tão extenso que o espaço nos podia engolir.

Antes que o fizesse, a Marina instalou-se a ler. Não sei se foi o Gabriel García Marquez que se estendeu com ela ou se um daqueles autores que, não fosse a minha amiga, eu não conheceria. Como o Nikolai Gogol. Esse eu ainda não soube ler sem sair das trevas. Mesmo com todo este Sol.

Por isso, lancei-me praia abaixo até ao limiar que separa o sólido e o líquido do pesponto português. O constante vai-vem da água, ficas tu ou chego-me eu. Toma lá dá cá.

Perscrutei a espessura líquida e transparente que a maré trazia baixa. E então vi-os. Muitos. Tantos. Peixes minúsculos, de cor indefinida e idade muito tenra, em alegre arraial de volta dos meus pés. Deixei-me ficar a observá-los por um instante dourado. Como é belo este meu Portugal.

Não urgi a chamar a Marina, roubá-la ao Gabriel, ou ao Nikolai, para lhe mostrar aquilo. Não tinha a certeza, podiam ser restos do meu poema não começado que se vingava da minha infertilidade e me povoava a imaginação, essa, fértil.

Pus-me, em vez disso, a caminhar. A linha de peixes minúsculos acompanhou-me, eu a deitar-lhes o olho. Sim, ali estavam. Nadavam e os corpinhos lisos iam brilhando com os raios de sol filtrados pela água, à vez. Pareciam estrelas no chão. E eu pés na areia, e a água nos meus pés.

E foi neste vibrar de luz que o meu fado começou a sair. Cantei-o em silêncio, um pedaço a cada pegada que imprimia e que era apagada de seguida. Cantei-o até se esvair a minha tristeza em cinzas. E a essas deixei escorrer, ofereci-as aos peixes.

Quando o meu fado calou a voz, não sei quanto tempo tinha passado, voltei para junto da Marina e da sua leitura. Ela viu-me sem fado e eu vi a areia sem sombras. Enquanto o Sol brincara com os peixinhos, arrancara as sombras da areia, que já não se podiam esconder mais.

A praia tinha-se, entretanto, vestido de famílias. Cada qual com o seu chapéu-de-sol a completar a fatiota. E a maré naquele vai-vem, a chegar-se a elas, a espessar, devagarinho, a querer oferecer-lhes o seu manto líquido, azul.

Afastei da ideia os peixes que me levaram o fado e foi a minha vez de mergulhar. Foi no José Rentes de Carvalho, e nos seus, e nos meus, holandeses, o primeiro livro que li do autor. Andei por lá umas horas, calcorreei a Amesterdão de há tantos anos e vivi as aventuras de negócios que não deixavam vislumbre de saída airosa e me chegaram a suspender a respiração.

Entretanto, a brisa da tarde tinha-se aproximado e o calor alentejano, alheio aos frios do meu livro, não se fez rogado. Pus Amesterdão de lado e decidi visitar os peixes, refrescar a pele. A Marina não largava o seu Gabriel (já me lembro, era ele, se fosse o Nikolai ela teria vindo comigo à água) e eu não insisti. Sei bem como é ter um dia livre de filhos e cheio de leitura.

Cheguei à beira da linha azul, do vai-vem, das ondas, dos três tons aquosos em degradé até ao horizonte. Olhei para baixo mas a transparência já não estava lá. E os mil peixinhos também não. Terá sido, afinal, imaginação?

Entrei na água e deixei-a roubar-me o calor. Nadei um pouco, não muito. Os holandeses estavam à minha espera. Que contraste. Aqui na costa alentejana tanto azul, lá em cima nos países baixos tanto frio. Pus os pés no chão e caminhei para fora de água, ainda à procura dos peixes no azul denso e espumoso abaixo de mim. Onde se terão escondido?

Levantei a cabeça para descobrir o local, na areia branca, onde estaria o meu livro em ânsias de me voltar para as mãos. Mas o que vi foi uma parede de gente em pé, no topo da rampa de areia que a praia esculpia desde a água. Até a Marina lá estava, distingui o seu biquíni branco e os caracóis castanhos saltitantes que parecem sempre acabados de lavar. Mas que agora estavam quietos, os seus caracóis e toda a gente.

Não, de certeza que eu não estava assim em tão boa forma, não a ponto de ter a praia inteira em pé, à minha frente, virada para... mim. Não.

Voltei-me para trás. E então vi-os eu também.

Eram mais de vinte, consegui contar. Ali mesmo, tão perto de nós. Aos saltos. Corpos enormes fora de água, uma e outra vez. Pretos, brilhantes, lindos. Os roazes do Sado.

Agora já sei. Os peixinhos fadistas foram cantar aos roazes o meu fado. E se calhar outros fados cantaram.

É por isso que estão os roazes tão felizes. São eles que mandam os peixinhos à praia, para ouvirem os fados na maré baixa.

Só lhes faltavam esses na sua colecção de cantigas. Já têm as de amor, as de amigo, as de escárnio e as de maldizer. E agora os roazes querem os fados, colhidos na ocidental praia lusitana.

As outras cantigas, aprenderam-nas há muito tempo. Vinham nos versos que Camões perdeu no mar.

23/04/2013

Casaco de lã castanha

Lembro-me do primeiro dia em que te levei à escola. Deixei-te no meio da sala grande, onde todos os meninos e meninas da tua idade eram acolhidos pela manhã.
Trazias vestido o casaco de lã castanha com coses café-com-leite e calças a condizer. Eras tão pequenina, mas já eras crescida. Vieste ao mundo com um passo ou dois de avanço.

Naquela manhã trouxe agarrada à pele a visão das tuas costas e do casaco que tricotara para ti enquanto tecia desejos de felicidade em cada voltear da agulha. Essas costas pequeninas, ainda sem espaço para os fardos que agora já conheces. Ali ficaste. Parada, em pé, a olhar para a sala que era a grande e que a ti parecer-te-ia gigante, na minha imaginação dorida.

Não te viraste para trás a confirmar se eu ainda lá estava. Para ti eu não me iria embora. Ficaste. Confiaste, confiavas sempre. Em mim.

Terás visto as lágrimas que deixei cair sem querer e que ainda estariam a brilhar no chão, quando finalmente te voltaste?

Acho que te obriguei a crescer muito nesse dia. Tu nunca me contaste; na tua linguagem de então não havia palavras que eu pudesse entender. E tu sabias disso.
Mas também sabias que eras o tesouro que me iluminava a cada inspiração.

É por isso que esses teus olhos vêem o mundo até mais longe. E os meus vêem o fundo da tua alma grande. Gigante, como a sala da tua escola de pequenina. São olhos, os meus, que passaram muito do nosso tempo em ti.

É por isso que sei todas as expressões do teu rosto. Sei as tonalidades do teu olhar e sei os trejeitos das tuas mãos, aqueles que fazes mesmo antes de acordares.


Hoje o livro de filosofia vinha contigo. Entraste no autocarro e não estavas ofegante. Trazias um sorriso acabado de nascer do canto dos pássaros da manhã. O aroma do teu café estava mais fresco. E parece-me que também trazias o mundo no olhar.

Não te sentaste ao meu lado. Mas eu disse-te bom dia com a alma e sei que ouviste. Porque nesse momento abriste a mochila.

Ainda te lembras do casaco de lã castanha?

22/04/2013

La vie est belle

Quando cheguei à sala de embarque para mais uma das muitas viagens aéreas que hoje em dia faço, procurei-os com o olhar. Não os avistei. Nem o Artur nem o Panpan. Seria uma sorte voltar a poder conversar com eles e ouvir mais das suas histórias. Contei que o Artur acha que a Holanda parece um jogo vista de cima?

Desta vez tive por vizinhos três barulhentos hermanos aqui da vizinha Espanha. Fizeram muito má vizinhança. Soltavam gargalhadas desmesuradamente sonoras a cada sílaba que um dos outros dois dizia. O que vêm eles fazer a Lisboa, os tolinhos?

Bem, mergulhei na revista que tinha acabado de comprar no aeroporto. Interessam-me estes artigos semi-científicos sobre os mistérios do cérebro humano, coisa a roçar a psicologia que me tem proporcionado bons momentos de leitura.

Quando interrompi já íamos nas alturas, mais precisamente na altura das vendas a bordo (serviço inútil que alguém se esqueceu de eliminar dos voos); interrompi para me agarrar à revista de bordo. Queria verificar o preço de um perfume - o meu - e tentar descobrir alguma utilidade naquela coisa do carrinho-a-passar "on board sales". Mas o meu perfume já não vem na lista de vendas, tem muitos anos disto.

Ninguém compra nada. Este serviço é quase tão desgarrado como aquela parte da apresentação das medidas de segurança - seja em filme, seja em demonstração humana - em que era capaz de jurar que sou a única a dar atenção. Eu e talvez as crianças. As mais novas.

A caminho de descobrir que o meu perfume está para lá de fora de moda, deparo-me com a Julia Roberts e o seu novíssimo "La vie est belle", parece que o nome é este. Em francês. Li a entrevista toda enquanto o carrinho-a-passar passou.

Descobri que a Julia, para além de ter participado na concepção do "La vie est belle" (ou será "La vie en rose"?) - só assim aceitava fazer a campanha, também acredita que se as pessoas seguirem a sua bússola interior, encontram mesmo a felicidade. Mesmo.

E não é que eu concordo terrivelmente com ela?

Se um dia me entrevistarem para a revista da TAP (a propósito, hoje o avião era o Natália Correia, nada a combinar com a Julia Roberts), também vou falar nisso. Mesmo sem perfume.

De regresso à revista que tinha comprado no aeroporto, fiquei também a saber que para se ser feliz - e caso a bússola interior esteja desnorteada - há que aprender a viver mais o momento presente e travar as preocupações com o futuro, ou então parar de invocar o passado. Ao que parece há dos dois tipos de distracção da felicidade, cada qual escolha o seu.
Garantem os entendidos que se se fizer isso, uma espécie de meditação simplificada centrada no aqui e agora, nada mais, equivalente a exercício físico, mas da mente, a coisa vai lá. E La vie est belle ou então en rose.

Com toda esta literatura em digestão mental, pus os pés de volta ao aconchego lusitano a pensar na Edith Piaf. Ela cantou uma das músicas mais lindas para inspirar o que quer que seja.

Porque será que no caso dela a vida não foi nada en rose e nada belle?



16/04/2013

Esteticista

Em pleno exercício das minhas funções de mulher, tinha marcado para aquele sábado de manhã a visita à esteticista. A ideia era libertar-me dos muitos centímetros de pilosidade que habitavam a minha pele e regressar ao estado admissível de isenta, tão bom. De pelos, claro.

A esteticista tinha gabinete no cabeleireiro do centro comercial lá do bairro.

Nesse dia não tive escolha e levei a Ritinha comigo, que observou todo o arrancamento do princípio ao fim com muita atenção. Os seus olhos, testemunhas jovens da passagem de apenas quatro primaveras, pareciam horrorizados. Mas não fez perguntas. Olhava para mim de vez em quando, revelando pesar e solidariedade no seu inexperiente semblante.

Já fora do gabinete de estética, sinto aquele alívio a invadir-me, que leveza. Não sem, no entanto, vir acompanhado do habitual ardor - hoje está mais forte, não está? - no pedaço de pele que se situa acima do lábio superior e só termina no nariz. Decidi então oferecer a mim mesma o prémio merecido: um café.

Era sábado, repito, dez horas da manhã. A zona da restauração, local apenas aprazível quando serve de cenário à degustação do recente alívio que eu sentia e ia sentar-me a saborear, estava praticamente deserta. Algumas lojas em redor já abertas, outras a abrir. Fazer parte deste renascer fez-me quase esquecer o ardor.

Fui buscar o café com um ligeiro disfarçar de mão a tapar a vermelhidão, e sentei-me a uma mesa com a Ritinha. Não, hoje não compro bolos, anunciei, satisfeita por ter resistido àquele tremelique do olho direito, técnica que ela usava para me dobrar. Não insistiu, não queria torturar-me mais, ainda estava impressionada com o que me tinham feito.

- Temos de ir para casa, preciso de pôr gelo aqui, está a arder, disse eu, com a mão a tocar ao de leve, para sentir a vermelhidão imaginada.

A Ritinha levantou-se de um salto e correu para o local de onde tinha vindo o meu café e, em bicos de pés e dedos espremidos a contornar o bordo do balcão de pedra, a escorregar, cabeça espetada, os caracóis pendurados nas costas, dizia coisas à empregada. Explicava, explicava, a Ritinha. Eu ouvia-lhe a vozinha aguda mas não lhe distinguia as palavras.

Quando finalmente percebeu o que aquela menina toda esticada, de quem só certamente via a testa e os olhos, pretendia, a empregada olhou para mim fixamente. Não lhe percebi a expressão, porque estava demasiado longe para isso. Mas durou, o momento que a empregada do café tomou para me escrutinar, durou. Depois virou-se para a Ritinha e explicou também ela qualquer coisa.

As mãos largaram o balcão, os pés regressaram ao contacto integral com o chão e a Ritinha um pouco desapontada voltou a correr para junto de mim.

- Temos de ir para casa, mãe. A senhora disse que a máquina está a aquecer e ainda não tem gelo.

Não tenho a certeza se para ela "aquecer" e "gelo" constituíram uma contradição. Pelo menos não desencadeou pergunta.

- O que foste tu dizer à senhora, Ritinha?

- Que o teu bigode está a arder, mãe.

14/04/2013

Banco de jardim

Sentámo-nos juntos no banco de jardim e ficámos calados. Ainda trazíamos os casacos de inverno porque a primavera, embora tardia, apanhou-nos de surpresa. O sol estava mesmo radioso, os seus raios compridos atravessavam os ramos das árvores e aterravam nos nossos rostos.

Eu deixei os meus olhos serem levados pelos transeuntes que, como nós, saudavam a primavera.

Passou a moça dos piercings a empurrar um carrinho de criança. Ela também ainda o era, vi isso na forma como caminhava.

Depois os dois casais da terceira idade, encasacados como nós. Uma das senhoras caminhava com um andarilho e dizia que mais depressa é que não podia. Disse isto sem lamúria, satisfeita pelo sol. Os outros três também iam contentes e nenhum deles queria acelerar o passo. Mas isso ela não sabia.

No outro sentido, vinha o rapaz do cão. Cruzou-se com os quatro do andarilho, e contrastou. Calças a descair na posição vertiginosa de exibir os interiores, andar de pernas abertas não fosse as vestes escorregarem. O cão era afinal cadela e vinha a arfar. Musculada e agressiva, como o dono.

Depois passou o homem que trazia o jornal debaixo do braço, o saco que reconheci ser da padaria e ainda mais um saco com compras do supermercado.

Os raios de sol intensificaram-se. Querem a nossa atenção só para eles, e nós estamos distraídos a olhar quem passa. Obrigaram-me a fechar os olhos. Encostei a minha cabeça no teu ombro, mesmo a jeito, tão ergonómico.

E foi então que entrou em cena o riso da criançada balouçando-se no parque. Havia um menino - ou seria menina? - que o pai empurrava, mais depressa, pai, mais depressa. Uma outra criança, mais velha, ria e cantarolava.

Obedecendo aos raios de sol, separei mentalmente os sons e sobressaíram agora os pássaros, tantos! Não os pude contar, mas eram bem uns quatro ou cinco diferentes cantares. Cada um no seu lugar daquela orquestra espontânea. Não te pedi para identificares os pássaros pelo canto, porque não sabia se tinhas os olhos fechados e os conseguias ouvir.

Ao longe ladrava um cão.

- Ouves o cão? - perguntei-te. Sim, ouvias. Tinhas os olhos fechados, então, mas não interrompi o teu concerto com mais perguntas.

Será que as outras pessoas tinham desaparecido e só os pássaros e o cão ficaram a brincar com os meninos dos baloiços? Voltei a abrir os olhos por instantes.

Não. Continuavam a desfilar mesmo à nossa frente, aquela menina que ia com o pai. Vamos para casa, Inês? disse ele, casaco descaído num ombro, o triciclo cor-de-rosa da Inês na mão que correspondia a esse ombro. A Inês desatou a correr e a rir, o pai e o triciclo atrás.

Conduzi a sinfonia ao meu gosto, abrindo e fechando os olhos. Ora as pessoas, o verde das árvores, as flores ali no jardim, os movimentos de quem passava, os raios do sol a cintilar em toda a gente. Ora os pássaros, os risos nos baloiços, os pais a chamar, o cão a ladrar ao fundo.

Adormeci, ainda com a cabeça no teu ombro, para ter a certeza que estavas ali.


Quando acordei estava a chegar à estação em que tinha de me apear, o comboio desacelerava. Utrecht, anunciava a voz em neerlandês. Lá fora ainda nevava e o teu ombro era afinal o vidro aquecido da janela.

Só não chorei, porque tinha sonhado com o nosso jardim. E, no meu sonho, éramos velhos mas estávamos juntos.

13/04/2013

Leite entornado

Eu já escrevi sobre elas, aquelas manhãs sem fim na fila de trânsito sentido Cascais Lisboa.

Filas nas quais os motores dos automóveis seguiam pouco mais que estacionados, numa dormência que não conhecia descanso.

As crianças, alheias ao facto de os carros terem sido feitos para rolar a velocidades diferentes, iam bebendo o leite a saber a plástico, de tanto o copo o transportar, manhã após manhã, pára após arranca.

Era de esperar, o resultado. O buraco da 24 de Julho estava lá e normalmente não falhava o pneu do meu carro.

Leite no chão. Nas roupas das miúdas também (era o menos), nos bancos delas (eram laváveis). Mas no chão, ai. Na alcatifa do automóvel. Local perfeito para todas as colónias de bactérias de que a Natureza se lembrasse por aqueles dias - ainda longe de tamanha crise - de criar.

A meio do Verão começou a ser difícil entrar no carro.

Mas como era Verão, as janelas iam bem abertas. Ajudavam a suportar o leite estragado e o consequente cheiro em proliferação. Porque não lhes dei o leite em casa? Porque não me levantava eu mais cedo? Porque havia de fazer tudo sempre à pressa? argh!

Teve mesmo de ser: chegou o sábado em que deixei a vergonha em casa. Fechei-a no cofre, não fosse lembrar-se de sair pela janela, voltando a encaixar-se em mim antes de eu lá chegar.

Guiei até ao centro comercial do bairro, onde uma comitiva de brasileiros descontraídos e simpáticos estava à disposição, por doze euros, para fazer a limpeza interior e exterior do veículo. O meu pequeno automóvel implorava por isso e o meu nariz tinha-se juntado ao grupo.

Estacionei perto do local das lavagens, mas não muito, por segurança. Havia que manter os benfeitores na ignorância quanto ao estado da situação. Por enquanto.

Desenrolei-me, saí e fechei a porta rapidamente. Um dos trabalhadores já caminhava na minha direcção, sujo, descontraído e sorridente. A parte do sujo relaxou-me. Talvez a coisa passasse despercebida.

- "Bôa tardji, sióra!", saudou, cordial.

Boa tarde e estendi-lhe a chave, com os olhos baixos, deliberadamente ocupados, à procura de qualquer coisa que os meus sapatos haviam certamente pontapeado. Ou talvez uma imperfeição do solo liso da garagem.

Era para fazer a limpeza completa, dentro e fora, por favor. Quanto tempo demora?

- "Duais horais, sióra. Vai ficá bêlêza, viu?"

Duas horas e algumas lojas depois, eu voltei.

Concentrada em mostrar-me desligada do assunto, de qualquer assunto, e a invocar esperançada a imagem sempre descontraída da comunidade brasileira, avancei, agora quase confiante, para retomar o meu carro. Limpo e respirável de novo.

Lá estava ele, sorridente, com a minha chave na mão. Ufa. O rapaz não notou nada, a minha confiança reapareceu. Talvez seja prática corrente, afinal. Copos de plástico com leite em mãos de quatro e seis anos, filas de trânsito, buracos na estrada, sono e pressa em mistura explosiva, leite entornado. Afinal, as filas tinham muitos mais contribuintes, eu não as fazia sozinha. Ah, ele não notou. Alívio. Cabeça erguida. Também sorri.

- "Ô sióra!..."

Ai.

- "Ô sióra!... Foi barra pêsada entraí, viu?"


Pois foi. Foi para ele e para mim.

Foi barra pesada passar a acordar mais cedo e dar o leite às crianças em casa, por prevenção.

Foi barra pesada, mas quando o Verão acabou voltámos a circular de janelas fechadas.

E eu não mais precisei de fechar a vergonha em casa.

11/04/2013

Calção rosa escuro

Eu estava a separar a roupa para lavar na máquina. Roupa branca para dentro, roupa escura para o lado.

A Leonor, então com 4 anos, observava-me.

Até que, da pilha de roupa suja ainda por separar, surge o par de calções rosa escuro a espreitar. Via-se bem a etiqueta: dos 4 aos 6, lavar a 30º.

Debruçou-se sobre a pilha. Não muito: embora das duas a mais alta fosse ela, a diferença era pouca. Pegou no calçãozinho da etiqueta de fora. E estendeu-mo. Toma, mãe.

- Ah, esse não, esse é para lavar noutra máquina, filha.

Olhou em volta, à procura. O calção balouçava, pendurado na sua mão.

- Nesta, mãe? - o pequeno dedo espetado apontava para a máquina da loiça, ali ao lado.

10/04/2013

O livro de filosofia

Todas as manhãs ela entra no autocarro, na mesma paragem. Todas não, há aquelas em que a vejo da janela do meu lugar a correr rua abaixo, não chega a tempo.

Deve ter uns 15, 16 anos. Tem o cabelo escuro, encaracolado e comprido, dos mais bonitos e brilhantes que já vi. Reparei nela por causa do cabelo.

Às vezes traz na mão um copo de plástico fechado, com café. Enche o autocarro com o seu aroma e é a única que não dá por isso.

A mim apetece-me dizer-lhe bom dia. Queria agradecer-lhe o cabelo sedoso, o café aromático.

Nunca se sentou ao meu lado. E eu nunca lhe disse bom dia.

Traz no olhar uma doçura quente, luzidia como azeitonas pretas. É um olhar sem fim, sem fundo. Mais maduro que a sua idade.

Ultimamente parece triste, inquieta.

Se ela chegasse mais cedo e ficasse na paragem a ouvir os cantos matinais e primaveris dos pássaros que vivem nas árvores do bairro, já teria experimentado a paz que as primeiras notas da manhã oferecem.

Assim que se senta no autocarro, que àquela hora não vai cheio, tira um livro da mochila. Um livro da escola.

Lê mais vezes o de filosofia. Quando o faz, vai serena, concentrada. Lê e bebe o café distraidamente. De vez em quando, levanta a cabeça e fixa o olhar profundo no infinito que a janela lhe oferece. Contempla a vida a correr lá fora, penso eu. Mas não lhe consigo ler os pensamentos.

Ontem abriu o livro de biologia. Não levantou a cabeça, enquanto leu. Virava as folhas nervosamente. Para a frente, às vezes para trás. Ao fazê-lo, para trás, mexe os lábios, está a ler mentalmente, repetidamente. Quando será o teste?

A inquietação que transporta na mochila - ou será no copo de café? - está, esta semana, mais evidente. Mas ela é suficientemente nova para não saber que esse passageiro indesejável vai de boleia.

Hoje, quando apanhou o autocarro, vinha mais ofegante. Trazia o café no copo de plástico. Encheu o autocarro, não reparou. Nós reparámos.

Sentou-se num lugar à janela mas não abriu a mochila. Acho que o livro de filosofia não estava lá.

Eu aguardava o momento de estudo, que tardava. O copo de plástico estava esquecido na sua mão. Tremia.

E eis que desata a chorar. Chorou baixinho durante todo o caminho até à paragem em que costuma sair.

Não, o livro de filosofia não estava lá.

Saiu.

Fiquei a vê-la do meu lugar. Ela, parada no passeio, os ombros a tremer, o lenço no nariz, a mochila - vazia? - às costas. Uma senhora que passou aproximou-se e falou-lhe. Ela abanou a cabeça e afastou-se. O autocarro seguiu e não vi mais.

Podia ter ficado desiludida por eu não a ter consolado no seu pranto. Podia, se soubesse que eu existo. Podia, se soubesse que eu lhe conheço os livros.

Podia, se soubesse que a adoptei como filha secreta, uma filha cujo nome não sei.

Fiquei feliz por ela ter chorado. Libertou-se da inquietação que trazia na mochila, no copo de café, presa nos seus caracóis longos. Libertou-se? É melhor confirmar, amanhã.

Pode ser que se sente ao meu lado. E eu vou dizer-lhe bom dia. E, se ela deixar, pergunto-lhe o nome.

03/04/2013

Hormonas

Saí do trabalho a voar para chegar à escola a tempo. Não queria perder o debate que as professoras da minha filha tinham organizado com a turma sobre a disciplina e a constante falta dela. Falta contra a qual o debate se insurgia. Participavam os mais de vinte alunos da turma de sétimo ano, as organizadoras e alguns pais e encarregados de educação.

Foi mostrado um filme, imagens, textos. Sobre todos eles se debateu. Em nenhum caso se ouviu um aluno falar sem primeiro levantar o braço, manifestando a intenção. Braços que, sem excepção, vibravam no ar.

Disseram o que é a escola, disseram para que serve a escola. Disseram o que está certo e o que está errado no comportamento deles.

E depois centrou-se o debate no tema da indisciplina.

- "João, diz tu"

- "Ó stôra, ó stôra.... como é que eu hei-de dizer... ó stôra..."

- "Estão aqui mais pessoas na sala, não te dirijas só a mim."

- "Sim pois, ó pessoas, é que nós somos crianças, não é... quer dizer, somos pré-adolescentes! E temos, ó stôra, ai, pessoas, nós temos... hormonas! isso... temos hormonas e ficamos um bocado, assim... ficamos malucos, stôra. Pessoas. E 90 minutos de aula é muito tempo e nós não aguentamos. É das hormonas."

- "Sim, João, mas vocês têm de fazer um esforço para tomar atenção, controlar as hormonas enquanto estão nas aulas."

Mais braços no ar, a chamar a chamar.

- "Tu, Pedro."

- "Stôra, está bem, podíamos, mas as aulas também podiam ser de 50 minutos, como os nossos pais tiveram, não é? Eles aprenderam as coisas todas em aulas de 50 minutos, não aprenderam? Aprenderam e fizeram as pontes e os edifícios, como esta escola em que nós estamos! Eles também tinham hormonas. Mas só tinham 50 minutos de aula!"

- "Isso é tudo verdade, Pedro, mas se pensares bem, é nos primeiros cinco minutos da aula que vocês estão mais indisciplinados."

Braços agitados, esticados, impacientes.

- "Diz tu, Susana."

- "Pois 'tamos, stôra, por causa dos 90 minutos da aula anterior!"


O debate durou duas horas e meia. Saí contagiada pela energia deles, pela vibração que os seus braços esticados provocaram no ar. A ânsia de crescer e viver que pulsava na sala invadiu-me a alma.

O debate sobre a indisciplina foi afinal muito mais disciplinado do que eu esperava.

Indisciplinadas são as reuniões de pais. Nessas, não há entusiasmo no ar. Há queixas e há críticas. Há muita falta de vontade. E há ausências.

Esta geração de pais, que sabe fazer pontes e edifícios, podia aprender a calar os ais.

Afinal são deles estes filhos com tantos mais.

02/04/2013

Artur e Panpan

Ontem fiz a viagem Amesterdão Lisboa num lugar encantado dentro do avião, ao lado deles.

Ambos exibiam o colar de plástico com a bolsa dependurada, guardiã dos seus documentos de transporte. Dois meninos que viajavam sozinhos e se cruzaram no meu caminho. E juntos cruzámos o céu.

Artur tem sete anos e queria saber se já podia usar manga curta quando chegasse a Portugal. Tinha passado as férias da Páscoa na companhia da mãe, que se tinha mudado há muito tempo, assegurou ele, para a Holanda. Viajava agora de regresso para junto do pai.

Panpan nasceu na China, longe de Xangai e perto fiquei-por-saber-de-onde, há dez anos. Vive há cinco em Portugal e também tinha ido de férias à Holanda. Para casa de um primo. Tinha as mãos ocupadas a jogar gameboy e falava sem tirar os olhos do jogo.

Ainda no chão, no aeroporto molhado e sombrio de Amesterdão, já tínhamos iniciado a amizade. Perguntaram-me quando começaria o avião a andar muito depressa.
Eu disse-lhes que iam sentir uma força a empurrar-lhes o corpo contra as costas da cadeira, e então iam perceber a velocidade. Eles não acreditaram e fizemos uma aposta.

Quando chegou o momento da aceleração em pista, ambos mantiveram-se triunfantes afastados do banco (não sem um cerrar de olhos e de dentes, em esforço) para me provarem que eu estava errada. Não havia força nenhuma.

Ganharam. A força tinha-se esquecido deles, eu bem vi!

Já acima das nuvens, o Panpan ia lançado nas suas divagações sobre a vida e fui então informada que o seu sonho é ir a Londres. Se eu já lá tinha ido? Sim, umas três vezes, talvez, ou quatro. Como é possível tantas, perguntavam os olhos amendoados desviados do gameboy por um instante.
É possível, porque eu sou muito mais velha do que tu.
E que idade tens?, pergunta o Panpan.
81, sugeriu o Artur. Não, corrigiu, 90 (deve ter visto os meus olhos arregalados de espanto, mas interpretou ao contrário). Tens 32, decidiu o mais velho. Está melhor, embora...

Há lá aquele relógio, continuava o menino do gameboy, mais uma vez sem tirar os olhos do jogo. É aquele relógio muito importante, sabes?
O Big Ben, sugeri.
Sim sim!! É esse! Ahhhh eu queria tanto ir a Londres! O livro que eu mais gostei de ler é do Sherlock Holmes e acontece tudo em Londres. Mas eu também queria entrar nos desenhos animados e ficar lá. O mundo nos desenhos animados é muito melhor. E também quero ser presidente da China e da América, rematou enquanto subia de nível no gameboy.

E depois perguntou-me se eu também tinha um sonho.

Tenho. Mas não lho contei. Nem ele quis saber qual é o meu sonho, o gameboy exigia agora toda a sua atenção. 

E tu, Artur?

Eu sonhei que um elefante com cauda de dinossauro e dentes de tubarão e pés de galinha gigantes corria atrás de mim e me queria apanhar. Mas depois acordei. E também tive outro sonho com uma vaca que também me queria apanhar e que também tinha pés de elefante e asas de dragão. Umas asas assim muito pequeninas, estás a ver? a posição das mãos a acenar junto às axilas do Artur demonstrava as asas do dragão. Sim, estou a ver.

A conversa continuou dentro dos mundos encantados deles e eu encantada com eles.

Começámos a descer. A ideia de nunca mais os ver depois de abandonar o avião começou a doer-me.

Aterrámos. A hospedeira veio dizer-lhes para esperarem nos seus lugares até toda a gente sair. Quando me levantei para me ir embora, estendi-lhes a mão e despedi-me. Adeus. Desejei-lhes felicidades.
O Artur perguntou-me se eu ia chorar. Não, não vou chorar.

Mas fiquei a saber que a mãe dele chorou quando o entregou no aeroporto umas horas antes.

Se eu pudesse, dizia-lhe que os sonhos do seu filho foram ouvidos pelos anjos lá em cima. E que os anjos cuidam dos meninos que contam os sonhos acima das nuvens. Meninos com os olhos grandes do Artur e os olhos rasgados do Panpan.

Se o Panpan tivesse insistido, teria ficado a saber que o meu sonho é este.

01/04/2013

Jeitinho de mão

Com esta mania de ser independente em tudo, incluí no pacote das minhas habilidades verificar o ar dos pneus do carro, antes de uma longa viagem.
Faço-o há décadas e em todos os carros que tive até hoje - não foram muitos, mas foram alguns - fui bem sucedida no processo. Tão satisfeita isto me fazia sentir, que devo ter partilhado o facto com a Marina.

Nesse Verão combinámos ir de férias com os respectivos filhos, num total de quatro, connosco seis.

Destino, Algarve. Suficientemente longe para merecer a verificação dos pneus.

A minha amiga, muito mais realista do que eu e ciente das dificuldades da vida, não se tinha aventurado nesta caminhada de tratar o carro por tu.

Eu assegurei-lhe que a minha vasta experiência com os pneus e a respectiva pressão do ar era perfeita para, quando parássemos na estação de serviço de Palmela, a coisa fazer-se sem novidade. Todo este discurso foi acompanhado de uma ponta de orgulho deste lado.

É altura de dizer que desenvolvi um jeitinho de mão que aplicava com segurança, no momento de retirar a ponteira da manga abastecedora do pipo do pneu e não deixar ssssssair muito ar. Aquele sibilar enervava-me. Será que a pressão não baixou?

Palmela à vista, fizemos a paragem combinada, miudagem aos xixis.

Atirei-me primeiro ao meu carro, para transmitir confiança à minha amiga. Quatro pneus mais tarde, confirmada a minha destreza, passei ao carro dela.

No primeiro pneu não me aventurei com toda a garra no jeito de mão do momento final. Foi só ao de leve. Ssss.

No segundo pneu, estabelecida a confiança com o VW Passat novinho em folha da minha amiga, cá vai disto. Jeitinho final. Sssssssssssss. Bolas, ainda saíu ar.

Terceiro pneu, vou aprimorar. Sssssssssssssssssssssssss.

Ssssssssssssssssssssss???

- "Ó mãe........", diz-me a Sofia, "......o carro está a descer".
- "Mmm? a descer?"

Já não me aproximei do quarto pneu, a Marina tirou-me a mangueira assassina das mãos. Os dois pneus de trás estavam completamente vazios, barrigas estendidas no pavimento a antecipar o banho de sol que só no Algarve deveria acontecer.

Totalmente confusa, a balbuciar desculpas e com a garganta colada, eu tentava acreditar no que via. Sentia-me perdida e não compreendia porque o Passat estava contra mim.

Com as pernas a tremer, dirigi-me ao balcão de atendimento da estação de serviço. Mas o que fiz eu de errado?

- "Acabei de furar dois pneus ao carro da minha amiga" - disse eu à empregada, que me olhou com espanto misturado com medo e assim ficou cinco segundos enquanto processava a informação.
- "Dois?..." - repetiu ela, exibindo dois dedos da mão direita a ilustrar a quantidade.

O salvamento chegou depressa e afinal os pneus não estavam furados. Os pipos do Passat eram feitos de uma liga frágil, tecnologia recente, explicou o mecânico de serviço que nos salvou as férias (denotei um certo, ligeiro, divertido sorriso no seu rosto que prefiro não tentar interpretar).

A tal liga de que eram feitos os pipinhos, excelente para comunicar com o computador de bordo do automóvel, não era à prova de jeitinhos de mão. Esqueceram-se dessa parte, lá na VW. Sssssssssssss.

As férias foram boas e a Marina felizmente continua minha amiga.

Mas as minhas mãos não mais deram jeitinhos em pneus de qualquer carro.