a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/12/2013

Zé e Maria

Tenho uma boa acção para fazer. Há séculos que fiz a última e o egoísmo de que sou feita ataca-me os ossos e traz-me envelhecida, de pétalas murchas, cria-me pontos negros, pelos no queixo, aspereza nas mãos (mas isso é de lavar muita loiça) e até me faz tosse e os dentes amarelos, ora leiam.

Foi há dias, mas ainda me anda aqui às voltas.

Ao descer de carro a serra, vejo, a seguir a uma curva, um casal de velhotes a subir a pé, pela berma, ou pelo sítio onde devia estar uma, esta mesma serra que eu desço ao volante. Não parei e não lhes dei boleia.

Se tenho desculpa? Claro que tenho, levo o carro cheio e pressa para a celebração do natal em família alargada, claro que tenho desculpa. Já para não inventar que eles podem ser bandidos perigosos disfarçados de velhotes fofinhos com dores nas costas.

Desço, então, o resto da serra com um peso a mais na consciência, vou a pensar que ainda posso voltar atrás e levar os velhotes ao seu destino, postava um dos meus passageiros na estrada, à espera, ou todos, e podia, e... mas não. Continuo.

E agora já o natal passou, já o ano novo vem aí e eu com os velhos na cabeça, ainda vão a subir a serra, os sacos que transportam, a lentidão que os leva, o peso dos anos que lhes verga as costas, tudo, e eu, que tive desculpa, vi que não são bandidos nenhuns.

Portanto ando assim, faltou-me isso. Já dei os restos do leitão, incluindo uma parte da pele estaladiça, ao cãozito branco assustado que mora lá na nossa serra e que nos visita de vez em quando e que afinal é uma cadela, já me inscrevi no município de Penela para adoptar uma cabra que vai produzir mais leite e assim permitir que mais queijo rabaçal se sente à mesa de mais gente, ou se deite, depende do gosto de cada um, já estou quase a oferecer umas pantufas à minha vizinha de cima, coitadinha, andar de saltos em casa é tão desconfortável e já encomendei a lenha para o resto do inverno aos ingleses que a andam a comprar aos sacos no continente, já fiz isto tudo, mas ainda os velhotes não chegaram ao seu destino e eu quero saber quando precisam de ir às compras outra vez, e outra vez e mais outra, para eu os levar e os trazer, para eu fazer a minha boa acção.

Corri serra abaixo, procurei nas clareiras e junto aos ramos caídos. Cheguei ao vale, à casa que tem sempre roupa estendida, procurei atrás da roupa, chamei por eles, devem ser Zé e Maria, de certeza que são Zé e Maria, mas nada, não os vi, não os ouvi. Subi a serra de novo, chamei-os mais uma vez, encontrei o cãozito branco que afinal é cadela, viste o Zé e a Maria, viste, canita?

E antes que ela me respondesse toca o despertador, são horas de ir trabalhar.

A minha boa acção vai ficar para o ano novo, mas hei-de vir cá contá-la.

28/12/2013

Nuvens do céu

Desta vez consegui a proeza de estar mais de dois dias seguidos no mesmo sítio e portanto o acontecimento pôr-o-bacalhau-de-molho fez enfim parte do meu natal.

No entanto, nem tudo foram rosas. Embora o bacalhau tenha apreciado o banho de quarenta e oito horas que lhe tornou a existência mais insossa, foi um sarilho convencê-lo a manter-se na água quente, muito quente, a ferver. Ou seja, o safado veio parar-nos ao prato um tanto ou quanto encruado e nem o azeite disfarçou.

Felizmente o natal é época para o perdão se sentar à mesa com a família e com o bacalhau encruado, e eu, sorte a minha, fui perdoada. A minha gente ficou ou mais mole, ou mais tolerante, ou mais lacrimejante, se for o caso, ou ainda uma combinação destas.

Quanto a mim, os desígnios divinos escolheram-me para a equipa dos ficou-mais-mole.

E isto tem consequências.

As minhas adolescentes filhas, entusiasmadas com a condição súbita de ficou-mais-mole da sua mãe, puseram, de mansinho, o pé do lado de lá do risco das regras, traçado fora da época mole, em momentos em que a lucidez esteve comigo.

Ora nas condições sazonais que em mim se instalaram estes dias, em que a minha visão se tornou turva, cobriu-se de nevoeiro, amolecida pela lareira, pelos brilhos vermelhos e dourados, pelos abraços da minha mãe que cheira sempre bem e pelo sorriso doce do meu pai que no natal fica menino e fica tão lindo, distraí-me.

Só passadas as primeiras horas, depois de os abraços da minha mãe terem ido para casa, do olhar doce do meu pai também, da minha vasta irmandade ter recolhido a respectiva criançada de volta aos lares, é que eu, devagarinho, retomei a minha vista apurada, deixei a moleza ir com eles todos, semi-cerrei os olhos e vi.

Vi a adolescência das crianças que trouxe ao mundo posicionada muito para além do tal risco que entretanto sacudiu a névoa e se mostrou tão nítido e o efeito desta causa foi uma zanga muito mal vinda, que eu não gosto de zangas nenhumas.

E agora, na condição de zangada, tenho de me segurar, manter a postura, não mostrar o amor que me brota a jorros, as palavras que querem ser doces, os abraços que me morrem no corpo que sinto atrofiado, e olho de soslaio para elas e vejo como são lindas, e lhes vejo as feições doces, perfeitas, os contornos das sobrancelhas, os narizes bem desenhados, amores da minha vida, que fiz eu que estou aprisionada no meu coração quase a rebentar, e agora.

Meti-as no carro, precisamos de comprar parafusos, o Erik vai tratar do assunto que eu com a broca não sou grande coisa, nem isso nem cozer bacalhau.

Debaixo da chuva miudinha na modorra da tarde, rumámos a Miranda do Corvo.

Quando contorno a rotunda que tem um cabeleireiro a anunciar na montra “dinâmicas e deslumbrantes”, ou coisa que o valha, já elas dormem no banco de trás, uma a cair para cima da outra.

E eu, então, páro o carro. Erik sai para comprar os parafusos, não no cabeleireiro, na grande loja de ferragens. Olho-as pelo espelho retrovisor. A beleza delas que aos meus olhos é tanta, o veludo de que se lhes faz a pele, o desenho do início dos seus cabelos ondulados, que lindos cabelos têm as minhas filhas, o contorno dos olhos fechados, o ar angelical que só lhes vem no sono.

Na loja de parafusos havia muita gente para atender e a chuva miudinha da tarde teve tempo de vir até mim.

E começar a cair dos meus olhos como se eles fossem as nuvens do céu.

23/12/2013

Zero zero sete

Lá fora o vento uiva com a potência de uma alcateia e a chuva anda doida a cair em todo o lado, não sabe de que terra é e a velha palmeira está muito agitada, nunca a vi assim.

Dentro, a televisão passa um filme do zero zero sete mas eu estou no canto oposto à lareira, junto à janela, por causa dos uivos dos lobos. Do vento, perdão, do vento. Mas uivos na mesma e eu não os quero perder.

(agora conseguiu o zero zero sete, com um camiãozinho de nada, impedir um avião dos grandes, pelo menos é o que me parece, visto daqui, de descolar)

A aldeia está quase deserta, as casas estão abandonadas há muito, a maioria em ruínas, outras em projecto de ruína. Só três ou quatro já renasceram das pedras e agora vestem-se de um charme rústico, vaidosas que dá gosto. Pelas chaminés lançam fumaça que mostram às vizinhas e que cheira tão bem.

Hoje, durante todo o dia, passaram três carros aqui na rua, a única da aldeia. Um deles apanhou-me à porta a sacudir a toalha das migalhas do pequeno almoço e parou.
  
O vidro da janela começa a descer, em solavancos tímidos, resposta ao manípulo que gira em círculos e me deixa ver agora o lenço na cabeça da sua ocupante, a testa, depois a cabeça toda, devagar, dobro a toalha, e agora o seu semblante, inquiridor. Sentada ao lado do marido, que conduz, os maridos é que conduzem, lança-me os bons dias, vizinha. E anuncia.

- Passamos aqui todos os sábados, temos queijinho fresco, feito em casa, em nossa casa, e queijo também do outro, seco, temos ovos das nossas galinhas e cozemos pão. É tudo fresquinho.

O marido olha-me espetando o pescoço, que não é comprido, para secundar o que a sua mulher me desfia e faz que sim, é isso, queijinho fresco, pois.

(o zero zero sete está agora a descansar com uma senhora que se deitou em cima dele, e com uma bebida, acho que a vai entornar, e eu oiço melhor os uivos do vento)

Agradeci com uma vaga promessa de sim senhora, um destes sábados, é questão de ir passando e nós estarmos cá, gostamos muito de queijo. E um feliz natal para os senhores, sim?

Mas e o vento, que continua furioso lá fora? Esta noite, que o abraça com o seu manto negro (ei! de onde tirei eu isto tão bonito?), quer deitar a velha palmeira ao chão, quer quer.

E tomar da chuva a bebida, que já entornou por toda a serra, para depois descansar dos uivos. 

Mas eu, que estou a ficar com frio, vou-me chegar à lareira e ver como acaba o filme.

19/12/2013

Que nem ginjas

Escapei por dez centímetros.

São dezanove e vinte e seis e eu ainda em casa a vestir as calças de fato de treino para ir à ginástica, aos saltos numa perna, depois na outra, já está, agora vai de calçar os ténis a enfiar um pé de cada vez e a torcê-lo para a direita e para a esquerda a ver se entra sem mais ajuda, que estou atrasada. É a última aula de ginástica antes de começar a encher a pança de natal, chocolates vêm à frente, uma ou outra noz enfiada num figo, os fritos no fim da linha, mas não hão-de escapar e, claro, o bolo rei que a minha irmã Catarina vai fazer na bimby (detesto a bimby, tenham lá paciência, mas isso fica para outro post, que este já vai encher).

São dezanove e vinte e oito e eu começo a atravessar a rua, o ginásio fica já ali no quartel dos bombeiros.

O opel corsa, daqueles antigos mas não dos mais antigos, parece que me viu no meu blusão branco como a neve, mas afinal não viu, não parou na passadeira, e eu a olhar para as luzinhas nas folhas que caíram das árvores com o vendaval recente e estiveram a chorar o dia todo e, agora que a noite também caiu mas penso que não se magoou, ao contrário das folhas, coitadinhas, que brilham à brava, são as lágrimas delas a reflectir a luz dos faróis do opel corsa (não sei se ponha opel corsa em itálico, ponho?).

Foram os dez centímetros a manterem-me fora do alcance do opel, que não me colheu. Dei um salto para a frente a ver se os dez passavam a decímetros e depois a metros o mais depressa possível e neste salto de corça assustada, não corsa, mas corça, e graciosa, olho para trás, mas que é isto.

E vejo o braço do condutor a acenar, desculpa lá amiga, que eu ia distraído. Esta do amiga não percebi, mas ficou-lhe bem pedir desculpa.

Continuo a caminhada até ao ginásio, viva da silva mas a tremer, e entro no edifício que parece ter espetada a torre dos bombeiros, enfeitada com luzes azul eléctrico para celebrar a época natalícia, apesar de o natal ficar mal de azul, mas isso não interessa nada para quem acabou de evitar o aborrecimento do tinoni de uma ambulância que havia de sair deste quartel. Isto, claro, se o óbito não se desse ali mesmo em cima das folhas e das luzinhas que elas fazem com as lágrimas.

Entro no edifício, era aqui que íamos, é que me estou a desviar muito hoje, e vejo que sou a única ginasta a comparecer à sessão, facto que leva a treinadora a pôr-me em cima da máquina do programa dos tremeliques. Faz-lhe bem, diz ela.

E faz. Que eu depois de ter escapado ao corsa estou por tudo, já vinha a tremer e agora tremo mais um bocado e com toda a força.

Sempre posso acabar o relatório amanhã, ir meter a carta para a Epal no correio, arranjar uma desculpa qualquer para me safar do almoço de natal da empresa e vir para casa meter-me num banho de imersão que é coisa que não faço há vários.

Natais.

E, mana, o teu bolo rei vai-me saber que nem ginjas, está bem? Afinal acho que gosto um bocadinho mais da bimby, nunca me fez saltar, ainda que com graciosidade, nem ficar a tremer, ainda que me faça bem.

(e só por isso a bimby merece o itálico)

18/12/2013

Favas com porco

Aproximo-me com o tabuleiro debaixo da minha mão que, espalmada sobre ele o faz deslizar ao longo dos varões metálicos que correm à frente do balcão com as sobremesas, saladas e bebidas da cantina lá da empresa. Estamos na hora do almoço e eu gosto da hora do almoço.

Levo na mão a vinheta onde assinalei a refeição que escolhi previamente de um menu de quatro alternativas, e ela, ao ver-me em aproximação nem lenta nem rápida, que eu sou pessoa mediana, pergunta-me o que vai comer, dona...

- Susana, dona Esmeralda - ajudo-a a dizer o meu nome. E depois acrescento, carne.

(este parágrafo pode ter ficado um bocado esquisito, se a minha filha mais nova o ler vai fazer as paragens nos sítios errados, vai ficar confusa, vai agitar a cabeça e ler outra vez, ora vamos lá)

- Carne?! Vai comer favas?!

- Vou, eu gosto de favas.

- Mas a carne, o porco, os enchidos, isto tem porco, ora veja - e rebola as favas e companhia com a colher gigante dentro do tabuleiro rectangular, metálico, cheio de mossas - vai comer isto, escolheu este prato?

- Sim, eu gosto de favas, dona Esmeralda, repito e sorrio-lhe, para ela ver que eu estou a sério.

- Estou admirada que a menina (às vezes sou menina, outras vezes dona...) vá comer isto, insiste ela que na verdade precisa de saber mais, eu gosto de favas não lhe chega.

Eu já disse isto uma vez aqui e vou tornar a dizer. Gosto desta mulher.

Vai adiantada na casa dos cinquenta, levanta-se às cinco e dez da manhã, atravessa o rio Tejo para vir trabalhar e chega a casa depois das sete e meia e de atravessar o rio Tejo outra vez.

Antes de o marido lhe morrer, há dois anos, ela ouvia música nessas travessias e nos percursos de autocarro.

- Que música ouve, dona Esmeralda?

- Ah, é rádio que oiço, é a comercial, distrai-me. Eu gosto muito de música.

Um dia, enquanto limpa as lágrimas do luto às costas da mão que tem queimaduras feitas no forno, na outra mão segura os óculos que vai limpar à bata de trabalho, conta-me que pouco antes de morrer, o marido, muito magro, na cama todo o dia, a chamou.

- Deita-te aqui um bocadinho ao pé de mim.

- E eu, menina, tinha tanto que fazer, sabe como é, as coisas da casa, o comer, arrumar aqui e ali, as minhas netas para chegar, mas fui. Deixei-me ficar deitada ao lado dele um bocadinho.

A dona Esmeralda deixou de ouvir rádio porque o marido morreu e quer saber porque vou comer as favas com todo aquele porco.

E eu, que lhe disse a verdade, gostaria que ela tivesse alguém que se deitasse um bocadinho ao seu lado e lhe dissesse que não faz mal continuar a ouvir música para se distrair.

16/12/2013

Pegadas de dinossauros

São nove horas da manhã de uma terça feira de Julho, estamos de férias e tu vens-nos acordar, como sempre fazes quando não é sábado ou domingo, por causa dos lugares para estacionar.

- Bom dia meninas, quem quer vem, quem não vier já, fica! - dizes na tua voz firme.

Acordo e lembro-me que é terça feira. Salto da cama e digo, eu vou eu vou!

Iamos pelo menos duas, no máximo íamos todas quatro. Éramos adolescentes e nesta idade nem sempre a ideia de sair da cama é uma boa ideia, nem que o Sol já vá alto.

O caminho que conduzias até à Praia Grande fazia-se em dez minutos e a essa hora havia lugar para estacionar perto do Angra, o café onde começávamos o dia.

Entramos, todos dizemos bom dia e o empregado já sabe o que vai ser. O café para o paizinho e quatro mil-folhas (se íamos as quatro, vamos supor que hoje viemos as quatro) para as meninas.

À terça feira até podia dispensar o mil-folhas, mas comia-o ainda assim sem olhar para ele e sem saber se me tinha calhado o da cobertura branca com laivos castanhos ou o da castanha com laivos brancos, o empregado já os trazia aos quatro, empilhados num prato, para cima da mesa de madeira.

O que eu queria era o suplemento semanal do Diário de Notícias, que já vinha debaixo do teu braço desde que saíramos do carro e eu sempre admirei as pessoas que compram o jornal do dia e o lêem no dia, as pessoas que se levantam cedo ao sábado para lavar o carro e dizem que gostam de passar pela roupa lavada acabada de estender às janelas da rua e a cheirar a skip, admiro as que vão comprar pão com as galinhas para o comer ao pequeno almoço, ao pão, às galinhas não, e eu, que sou das tardias, pois sou, admiro estas pessoas. Adiante.

Então estava o Diário de Notícias em cima da mesa do Angra e tu, papá, todo inclinado sobre o jornal aberto, o café bebia-lo sem olhar para ele, agarrado às gordas, achava eu, o resto do texto era para ler lá em baixo na praia, à sombra do chapéu, que a manhã ainda era uma criança e nós também, mas em número de quatro, e que tempos bons foram esses.

Depois do café, das quatro mil folhas nas barrigas e do suplemento em meu poder, dobrado a fazer corpo com a minha toalha de praia, não fosse uma das minhas irmãs de repente lembrar-se que afinal também gostava das terças feiras, esse meu tesouro semanal era meu, inaugurado enquanto comia as folhas à dentada até chegar às mil, acho eu, que nunca as contei, depois do café, lembras-te papá, dirigiamo-nos à praia.

Escolhiamos o local de poiso para a manhã e, se a maré estava baixa e o espaço nos deixava mais sossego em redor, a felicidade suprema vinha sentar-se comigo na areia e eu sem saber o que era aquilo, só sabia que bom, que bom, e lia as crónicas e foi aí que aprendi que gosto de ler crónicas. Alguma vez te contei?


Abro os olhos. O livro que comprei há pouco no aeroporto está no meu colo, aberto na página que estava a ler quando mergulhei nas recordações. Olho pela janela e a escuridão da noite devolve-me o piscar ritmado da luz da asa do avião.

Estou tonta. A recordação, desenterrada pelas crónicas do António Lobo Antunes que me descansam agora no colo, fez-me isto.

Aqui, sentada ao meu lado no avião, está outra vez a felicidade, sim, suprema, essa que nasceu naquelas manhãs na praia.

A felicidade e dois holandeses que jogam trivial pursuit com um ecrã que mostra o tabuleiro redondo visto em perspectiva a fingir 3D e de vez em quando sai uma pergunta. Esta é sobre dinossauros. Eles não acertam.

Fecho os olhos de novo.

Se naquele tempo eu soubesse que na Praia Grande havia pegadas de dinossauros, teria saltado da cama todos os dias. Se não fosse terça feira, havia de ser dia de explorar pegadas.

E agora até podia escrever uma crónica sobre isso.

11/12/2013

Água da cascata

Não vejo o menor interesse nas potencialidades de um i-phone um i-pad ou um i-valhamedeus. Não vejo.

Sou proprietária de um aparelho de comunicações móveis que uso para telefonar (pouco), receber telefonemas (poucos) e escrever e ler mensagens de texto (não muitas).

É que me enerva quando há que escrever uma mensagem que tem mesmo de ser e as teclas que começam com a sequência qwerty como mandam as boas práticas destas coisas, com a sua abastada área de contacto disponível para o meu dedo aterrar, coisa para aí da ordem do meio milímetro quadrado, dispõem de uma aresta que lhes atravessa a minúscula diagonal no intento de me apanhar o jeito caso o dedo escritor aterre sem ele. Mesmo assim, apesar de todo o empenho dos engenheiros projectistas, acontece quase sempre sair-me um y em vez de um t e, se calha dar olhada rápida à composição escrita antes de enviar, detecto os erros e o caldo entorna-se.

É soprar, respirar fundo, apagar, voltar a pressionar o t e as letras que pelo meio comi, actividade complexa que me vale normalmente a) uma visita não intencional à internet, que faz o aparelho ficar suspenso no seu éter existencial de electrónica combinada especialmente não para mim, enquanto a barra azul cresce para a direita e a minha impaciência exponencialmente ou b) uma escorregadela do dedo para outro lado qualquer e vai de tirar mais uma fotografia aos meus pés, ao teclado do computador ou ao volante do carro (parado, claro), dependendo da situação e para dar os exemplos mais comuns.

E isto, meus senhores, não tem o menor interesse.

O que tem, então, interesse?

Interesse tem comer um dióspiro enorme, maduro e suculento e pingar a toalha toda sem me importar com as nódoas.

Interesse tem meter a cabeça fora da janela, no escuro da noite, ver as estrelas, que são muitas, e ouvir a água da cascata na encosta da frente.

E interesse tem, no dia seguinte, acordar aqui.


Fotografia tirada voluntariamente, por mim, com uma câmara fotográfica que tem uma lente redonda com um diâmetro de quatro centímetros ou mais, faz tzzzz tzzzz enquanto ajusta o zoom e o corpo da lente cresce para fora do corpo da câmara e volta a encolher para que o seu trabalho saia perfeito, depois faz clique, não me cabe numa mão fechada, nem nas duas, e com ela não posso telefonar a ninguém nem escrever mensagens nem visitar a internet. 

09/12/2013

Agriões, nabos e manjericão

Ouvi há dias na telefonia que a NASA vai enviar uma sonda para a Lua com agriões, nabos e manjericão.

O meu primeiro e rápido pensamento foi, ah, marotos, isto do dia um de abril faz as delícias de muita gente.

O meu segundo pensamento, também rápido, foi, não, não é abril, é dezembro e estamos a piscar o olho ao natal.

Duvidando, então, da minha acuidade auditiva, atiro-me ao jornal na internet, a ver que tal.

Confirma-se. A NASA tem um projecto que divulga ao mundo e que consiste em levar uma sonda para a Lua para plantar agriões, nabos e manjericão.

Ora oferece-me dizer o seguinte.

Em primeiro lugar a sopa de agriões, que agradece o nabo, também pede batata, cenoura, cebola e abóbora para a base. Água, sal e um fio de azeite nem se fala, têm de lá estar. Quanto ao manjericão, não o sabia parte da receita mas vou experimentar, gosto muito de manjericão.

No entanto, deixa cá ver, se a cozedura leva uma meia hora, aqui, à pressão atmosférica, na Lua vai demorar uma eternidade, ainda mais se se está com fome, a sopa do jantar de domingo é coisa para ser servida ao almoço da quarta feira seguinte. Por outro lado, gasta-se uma enormidade de energia a levar a sonda, esperar que a sopa coza e trazer a sonda de volta, para servir sabe-se lá a que esfomeados comensais, e eu, que ninguém sou mas tenho isto a dizer, eu a este projecto não vejo préstimo nenhum.

Portanto os rapazes da NASA, que eu fazia espertos que nem alhos (epá esqueci-me dos alhos) não percebem nada de culinária, nem com o toque do manjericão me convencem.

Pelo menos fiz o gosto de, lá em cima na abertura, escrever telefonia. Sempre o post serviu para alguma coisa.

04/12/2013

Cereais com pouco açúcar

Tenho, junto à janela da cozinha, um casal de canários.

Fruto de um momento de fraqueza em que me vejo sucumbir aos olhos redondos muito brilhantes e aos corpos saltitantes das minhas filhas, sim, mãe, vá lááááá, não pude nesses tempos idos resistir a tanto charme, estas aves já fizeram parte de uma meia dúzia de natais.

O tempo desatou, portanto, a passar e as minhas irresistíveis filhas, natal após natal, primavera após primavera, carnaval após carnaval, foram desviando os seus interesses em outras direcções como o voleibol, os amigos em doses industriais e muito urgentes, a arte de esvaziar frascos de shampô e condicionador de cabelo em dois dias, a habilidade de semear pela casa sapatos de ténis e meias, as séries da fox e o facebook. 

Não se lê, no parágrafo anterior, qualquer menção às pequenas aves cantantes, confinadas, ao contrário da minha expectativa inicial criada pelos olhos brilhantes, suplicantes, os saltinhos de entusiasmo, o vá lá vá lá tão repetido e alguns outros truques, confinadas, dizia, aos meus cuidados.

Entre água fresca para o banho ao sol da manhã, uma tarde passada do lado de fora da janela a cantar para os pombos, uma fatia de maçã suculenta que entalo na grade da gaiola ou ainda uma quantia generosa de papa de ovo acabada de comprar, faz também parte da lista a tarefa de limpar, lavar, mudar a forra.

Não sendo nós, nesta casa portuguesa, com certeza, ai não, não somos, grandes consumidores de jornais e revistas em papel, não me resta mais que a publicação da ordem profissional a que pertenço e que me vem cá parar a casa porque costumo pagar as quotas, para fornecer umas páginas dedicadas a construções metálicas, eficiência energética ou à boa aerodinâmica de qualquer coisa que voa, para não falar nas entrevistas aos directores, assessores e presidentes do tecido empresarial industrial da nossa sociedade, fornecer páginas, era isso que tratávamos, para atapetar o fundo de plástico do lar do casal de canários.

E não é que, em plena recta final de 2013, altura em que o voo das avezinhas está afinadíssimo, o canto tem tonalidades de acústica estudada pelos melhores especialistas, as histórias cantadas aos pombos vão carregadinhas de ciência fractal e técnicas energéticas de espantar pássaros, mas não estes, e não é que, dizíamos, recebo de repente por correio electrónico, nada de papel, correio electrónico, um endereço para clicar, não custa nada, e o acesso à tal publicação faz-se a partir de agora online sem mais nem ontem?

Portanto, queridos canários, vamos passar às caixas de cereais com pouco açúcar, é que não os há sem ele, desmanchadas e espalmadas depois de lhes consumirmos o conteúdo.

Além de darem boas alcatifas para pássaros, também ensinam sobre as quantidades diárias de nutrientes recomendadas para adultos saudáveis, hã?

02/12/2013

Instalações mínimas

Vivo uma grande fatia do meu dia, seja ele qual for, dentro do carro.

Isto há-de acabar, mas por enquanto temos de continuar com histórias destas no blogue. Blogue, já agora, ao qual me dedico em momentos destes, dourados, em que me encontro fora do veículo.

Parei, então, como prometido, debaixo da cancela. Um radioso dia de trabalho pela frente.

- Bom dia!

- Bom dia, menina.

- Aqueles vasos coloridos são seus, senhor Manuel?

- São sim menina. Eles estavam ali junto à parede do edifício - escusa-se o senhor Manuel com um sorriso ligeiramente comprometido - mas apanhavam pingas do ar condicionado e agora com o frio o melhor é pô-los aqui, sempre apanham mais sol.

- São muito bonitos, - digo eu, não vá o senhor Manuel ver uma crítica velada nas minhas perguntas - aqueles ali, amarelos, e os outros, laranjinhas, são pimentos, não são?

- São sim menina, eu gosto muito disto, sabe - encolheu os ombros e voltou a sorrir comprometido e depois continuou, encorajado pelos meus óculos escuros, acho eu, que lhe inspiram confiança ou coisa assim - mas esses são valentes, esses pimentos. Ardem!...

- Ardem-lhe nos dedos, é? - eu a lembrar-me dos ardores que se me colam aos dedos depois de cortar pimentinhos para o almoço, ou o jantar, tanto faz, eles ardem sempre.

- Não não, ardem-me na língua! Ando aí a tratar deles e depois levo as mãos à boca, à hora do almoço, são valentes, ardem bem, aqueles!

Matei, portanto, a curiosidade.

O senhor Manuel não come os pimentos.

O senhor Manuel trata dos pimentos durante a manhã.

O senhor Manuel, quando lava as mãos antes do almoço, vamos acreditar que sim, está bem?, não o faz como manda o cartaz do cuidado com a gripe A, que já se foi embora mas a malta esqueceu-se de tirar os cartazes lave-as-mãos-durante-vinte-minutos-e-esfregue-as-em-movimentos-circulares-assim-e-assim-até-que-lhe-doa-a-pele, porque a contaminação dos pimentos não sai e, devido aos movimentos incautos, chega-lhe à língua.

Estacionei o carro a pensar que se toda a gente lavasse as mãos como manda o cartaz da gripe A, a produtividade dos portugueses seria uma vergonha e as filas nas casas de banho piores do que a da ala das senhoras antes de começar a ópera no São Carlos, que por ter sido erigido nos finais do século dezoito, altura em que poucas senhoras iam à ópera, estou eu em crer, ficaram-se por instalações mínimas.

Quanto a mim, se lavasse as mãos como manda o cartaz da gripe A, não passaria tanto do meu tempo dentro do carro.

Sempre ficava mais económico.

29/11/2013

Do tamanho dos meus sapatos

É sábado à tarde e o meu programa não é dos que me fazem pular de alegria, que eu, em tendo motivo, pulo de alegria.

Entro no sector do apoio ao cliente da grande superfície que vende electrodomésticos, aparelhagens de som e máquinas de barbear, entre muitíssimas outras coisas a cuja menção, não tenhais medo queridos leitores, vos vou poupar.

Dirijo-me ao dispensador de senhas de vez, tiro uma, verifico que estão seis números à minha frente e sento-me com o meu electrodoméstico avariado ao colo.

Os meus olhos estão perdidos no vazio deste espaço sem alma e desfocam-se até me adormecerem o cérebro e me acordarem os confins da memória, enquanto embalo o meu electrodoméstico a precisar de apoio ao cliente.

Vejo-me sentada à mesa do refeitório do colégio, desta vez já tenho seis anos, disso sei porque o refeitório não é o mesmo que andei a sujar há três posts atrás e, em vez de trazer a comidinha de casa, tenho de comer a que me é oferecida a bordo das mesas de seis lugares, esta em que estou tem-me a mim e mais cinco cadeiras já vazias.

Hoje o almoço é empadão de carne esmagada. De cada vez que engulo a garfada vem-me aquela impulsão na garganta que tenho conseguido reprimir até agora, com muita concentração e muita noção de que é pecado não gostar da comida, há tantos meninos com fome no mundo.

Mas, apesar do meu sincero empenho, sinto-me culpada por levar tanto tempo a deglutir uma dádiva à qual eu devia estar agradecida, e por isso rezo, à minha moda, para que a senhora que anda com o tabuleiro gigante do empadão na mão a circular ainda pelas mesas, não repare na minha ingratidão, lentidão e sobretudo não adivinhe o meu pensamento pecaminoso de rejeição atómica deste empapado que me puseram à frente.

Mas ela vem aí, mesmo na minha direcção. Inclino a cabeça na esperança de ocultar o que ainda me descansa no prato, e eis que estaca o passo junto de mim, eu quase a tapar com as mãos o empadão malvado. A senhora pergunta, sorridente, que esta é boa senhora, quer mais menina? Quero quero, digo muito depressa, e penso: vou, vou comer tudo, tenho de conseguir, é só mais este bocado, vá lá, vá lá.

Falha de comunicação. Duas colheradas do tamanho dos meus sapatos, uma atrás da outra, despejam mais daquilo em cima do que já cá estava, este novo monte de empapado a fumegar e a cheirar muito intensamente, para eu comer.

Desmaiei, chorei, fugi, chamei pelo gregório, uma destas foi, escolham vocês. Eu escolhi nunca mais comer empadão.

E chega a minha vez de beneficiar do apoio ao cliente.

Levanto-me e dirijo-me ao rapaz que se prontifica a ouvir-me a queixa.

- Esta trituradora que ofereceram na compra do frigorífico e que ainda está em garantia, veja aqui o papel, se faz favor, avariou.

- Hum, hum, uh uh. Estranho, deixe ver... É uma boa trituradora, eu tenho uma igual e a minha mulher ontem fez um empadão de carne que a senhora havia de ver, uma maravilha. Levantou a cabeça e sorriu para mim.

Mas eu já lá não estava.

27/11/2013

Cancela

Hoje tive a certeza, anda alguém a trazer para aqui vasos com flores.

Entro com o carro e passo na cancela que se levanta todas as manhãs muitas vezes, uma delas é para mim, ao chegar ao meu local de trabalho. Viro o volante à direita para fazer a curva apertada do costume, todos os dias é isto, mas hoje tive a certeza: o número de vasos com flores, alinhados no murinho do qual me desvio se não quero raspar o meu veículo outra vez, que não quero, tem vindo a aumentar e hoje compunha um alinhamento de alto lá com ele, coisa bonita. Pena tenho de não me ter ocorrido tirar uma fotografia para postar aqui e trazer o florido às nossas vidas (à minha, que escrevo, e à do meu querido leitor ou da minha querida leitora, que lê), mas pensando melhor ainda bem que não tirei as mãos do volante nesse momento crucial de viragem do dia. À falta de foto puxemos, portanto, pela imaginação.

Desconfio do porteiro.

Aquele é homem de saber apreciar a vida. O seu gabinete de trabalho, não lhe vou chamar casota, dentro do qual está o botão que ele prime para fazer levantar a cancela dos bons dias, e que eu imagino ser vermelho, deve ter uma área não superior a meio metro quadrado. Se não fosse a cortina de ripas horizontais a descair para um dos lados, pendurada na janela de dimensões ridículas, imaginação para que te quero, mais uma vez, aquilo faria lembrar uma casa de banho das que aparecem no Rock in Rio e por aí.

Ora o nosso homem tem sempre assunto fresco com que nos entreter, se calha alguém se demorar mais na saudação à passagem. Versando habitualmente pelas áreas das medicinas alternativas, não há dor que se faça passar por debaixo da cancela que eu já referi e que um dia foi ornamentada com riscas enviesadas brancas e vermelhas, pois não há dor, como eu dizia, para a qual ele não tenha remédio.

Foi assim que conheci as bagas goji.

Passa-se isto muitíssimo antes de a cadeia de supermercados onde me costumo abastecer, em visitas rápidas demais que me fazem normalmente lá voltar porque faltou a pasta de dentes, as descobrir, às bagas.

Tendo conseguido este homem convencer alguns dos meus colegas mais temerosos, passei a ser espectadora da ingestão das ditas bagas à mesa da cantina, que sim senhor, isto é coisa que faz bem a tudo, precisar o detalhe faz-bem-a-quê é que eu já não posso, que se me varreu. Lembro que se passa isto há muito tempo.

O que posso afiançar é que as bagas goji não emagreceram ninguém, não fizeram aumentar nem diminuir a produtividade de ninguém e não rejuvenesceram alguém, que ninguém estava a ficar repetido.

E deve ser por isso que este homem, que quer é o bem de todos nós, se dedica agora a alindar-nos a entrada.

Amanhã paro debaixo da cancela e pergunto para que são as flores.

É que estou a precisar de um remédio para a curiosidade.

21/11/2013

Carne aos bocados

Ponho o pé no travão e imobilizo o carro junto ao semáforo, está vermelho.

Um homem e duas mulheres iniciam a travessia da estrada, ele leva uma mala de computador a tiracolo, elas a obrigatória mala de senhora e uma lancheira cada uma que, alvitro eu, lhes acondiciona o almoço.

Desvio os olhos dos transeuntes e penduro-os no círculo vermelho luminoso acima da minha cabeça. Observo-lhe as nervuras rectilíneas que se entrecruzam na forma convexa do vidro.

O sol brilha no céu azul e frio e inunda-me o rosto desta luz, arranca-me daqui e despeja-me naquele dia em que a minha lancheira do almoço era maior que estas que cruzam a estrada, era branca e tinha bolas encarnadas. Se isto fosse um filme a coisa fazia-se assim: de um plano close-up da luz vermelha do semáforo morria-se para o plano também close-up de uma das bolas da minha lancheira e depois a andar para trás até se ver a lancheira toda, e até se ver que eu era pequena e que punha com esforço a lancheira em cima da mesa do refeitório do colégio. Mas isto não é um filme, é um blogue.

Tenho cinco anos, não gosto do cheiro do refeitório, caminho com cuidado sempre que aqui entro porque o chão costuma estar gorduroso e eu não quero escorregar nem quero cair.

Chego ao meu lugar na mesa compridíssima, elevo a lancheira com esforço e ponho-a em cima da mesa, como a imagem do filme já mostrou, tiro o pano, que desdobro, e estendo-o na fórmica branca, agora o molho de talheres que vem dentro de um envelope de tecido de algodão com as inicias da minha avó bordadas, na berma do pano. Sai o prato que é de plástico amarelo, de plástico porque aos cinco anos há o risco de partir um prato se for de loiça, e amarelo porque a minha mãe gosta muito desta cor e fica aqui bem ao lado do pano das iniciais, com os talheres. E agora o termosDesenrosco a tampa, sinto que o que lá vem dentro ainda está morno, e espreito.

Carne aos bocados. Detesto carne aos bocados.

Deito o conteúdo no prato amarelo - a carne aos bocados e a massa, também vem massa - e sento-me.

Começo a comer a massa.

Enquanto luto para que o fio de esparguete não demore muito a entrar-me na boca, não é fácil manobrar estes fios compridos, quase me falta o ar, espreito pelo canto do olho à procura da dona Efigénia, a senhora temível que toma conta deste refeitório e que nunca o limpa, acho eu, a ver se ela está a olhar para cá. Não está. Pego no primeiro bocado de carne aos bocados e deito-o para o chão, debaixo da mesa, disfarçadamente.

Mais um comprido fio de esparguete a debater-se comigo, desta vez o meu poder de sucção é tal que a ponta do fio bate-me no nariz antes de me entrar na boca, e a dona Efigénia distraiu-se outra vez com o António Manuel, que é uma peste e está a dar-me agora um jeitão que ele seja uma peste.

Vou alternando os lançamentos de pedaços de carne aos bocados para a direita e para a esquerda, debaixo da mesa, não vá o chão perto dos meus pés ficar saturado e eu ser apanhada a fazer pior que o António Manuel.

Continuo a comer a massa, cada vez mais confiante, e continuo a popular o gorduroso chão do refeitório, que agora já sei porque era gorduroso aquele chão.

E termino o serviço. O meu prato está que nem sol sem nuvens isento de mácula ou vestígios, a minha barriga cheia de esparguete e o chão já se sabe.

Levanto-me e começo a arrumar tudo outra vez dentro da lancheira com bolas encarnadas. O refeitório já está quase vazio mas eu faço-o devagar, para despistar suspeitas. Sinto-me poderosa, porque disto nem a minha mãe vai saber, a não ser que me ande a ler o blogue.

Se a minha querida mãe me anda a ler o blogue não sabemos, o que sabemos é que a dona Efigénia está a inspeccionar o chão debaixo da mesa onde eu ainda estou, agora a dobrar o pano, que fecho neste fim de espectáculo.

- Ó menina! Aquela carne não é sua? (o meu coração dispara e eu finjo que não oiço a dona Efigénia)

- Menina! Havia carne parecida com aquela no seu prato, que eu vi! (continuo a fingir que não oiço, o meu nome não é "menina", António Manuel, onde estás?)


O carro de trás apitou, o sinal estava verde.

Arranco e penso que nunca se deve confiar nas pessoas que não aprendem a chamar-nos pelo nome, nem quando fazemos asneiras.

19/11/2013

Inflamados corações

Quem viu o jogo com amigos pôs-se aos pulos em abraço comunitário, e aos gritos, porque este de hoje foi jogo de valor, como se costuma dizer.

Quem tem facebook escreve esta noite no facebook sobre o jogo.

Quem sabe tuitar fá-lo por aí sobre o jogo.

Quem tem um blogue pode espraiar-se mais ou espraiar-se menos e divagar sobre o jogo.

Quem não tem nada disto, mas tem telefone, já ligou a alguém e está a falar sobre o jogo.

Quem vai no carro dá murros na buzina, que eu estou daqui a ouvir.


Eu não percebo nada de futebol e não gosto de me meter pelo tema adentro, porque o mais certo é espetar-me nalgum poste de sentido proibido, pagando com um galo na testa a distracção.

Mas há uma coisa que eu percebo.

Percebo que nós, povo lusitano, dorido de cortes nos salários, ajustamo-nos aos cortes nos salários, nós, povo sofrido com o aumento da idade da reforma, conformamo-nos com haja saúde e ainda metemos no horário o transporte dos netos à escola, nós, povo magoado com o encurtamento das férias, aprendemos a compensar aos fins de semana, convidamos mais vezes os amigos e distribuimos abraços a torto e a direito, que é assim que somos, nós, povo desiludido deste lugar ao sol que parece não lhe pertencer, aproveitamos a praia até ao limite, nós, povo que dantes andava de carro, aprendemos as vantagens do comboio, do metro e de andar a pé.

Mas constato sem hesitar que há uma régia excepção, um intervalo neste padrão de ajustes que carregamos às costas e nos marca as passadas.

É que nunca este bom povo de Portugal, nunca estes lusos, inflamados corações, muito ou pouco entendedores da arte de chutar a bola, nunca esta boa gente se adaptaria a ficar de fora nas classificativas para um mundial de futebol.

E a isto, meus senhores, eu tiro o chapéu.

17/11/2013

Folha de hortelã

Para a viagem pus na mala três livros, dois para ler e um para escrever. Um dia ainda hei-de viajar só pelo prazer de ler em viagem. E escrever, ler e escrever.

Apanho o táxi para o aeroporto na praça do costume e desta vez o motorista é desconhecido, mas só até me pôr a par da sua história.

Homem de quem a juventude já se despediu, mas a velhice ainda não conseguiu saudar, diz-me que vai ficar frio no fim de semana, minha senhora. Oito graus. E vai fugir do nosso frio ou vai para mais frio, quis ele saber. Vou para mais frio, mas primeiro é para o aeroporto, se faz favor (há momentos em que me é de todo impossível conter a vontade de gracejar). Ele perdoa-me e continua.

Sabe a senhora que eu gosto de pegar cedo ao trabalho, às cinco horas faço a minha higiene, banhinho (juro que ele disse banhinho), e às cinco e meia já estou no carro, minha senhora. E levo muita gente ao aeroporto, muita gente, entro e saio do carro, por causa da bagagem, àquela hora, e não me constipo. A minha mãezinha (e agora disse mãezinha), teve oito filhos e nós andávamos descalços a fazer ski no gelo que havia na erva de manhã, sabe a senhora, caíamos muito, mas ninguém se importava, não tínhamos frio. Depois comíamos a canjinha (sim, canjinha) com aquelas galinhas, um bocadinho de sal, uma folha de hortelã e a gordura dava-a a galinha, era aquele cheirinho (cheirinho)! Ah, aquilo é que eram tempos, minha senhora. Dos meus irmãos só ficámos vivos quatro, os outros morreram com dias ou com meses, sabe, era assim, os mais fortes é que vingavam. Por isso é que eu não me constipo, concluiu.

Chegamos ao aeroporto, a viagem até aqui é curta, e ele, com um suspiro que o traz para o momento presente, informa-me: são cinco euros e noventa e cinco cêntimos, minha santa senhora.

Eu, com a mão em curso de mergulho na profundeza da minha mala em busca da carteira, sou apanhada de chofre, santa?!

Sim, diz ele, eu sei ver quem são as pessoas e a senhora eu vi logo, é uma santa senhora. E digo isto porque é mesmo, que há senhoras que falam falam e é cá uma conversa que eu mando-as falar com o marido delas.

Paguei a corrida, agradeci-lhe o cumprimento e cruzei as portas automáticas do edifício, que me pareceu darem-me as boas vindas com aquele escorregar certeiro, a abrir caminho, ou então é de me sentir santa.

É que isto é homem que sabe do que fala, penso, enquanto subo o tapete rolante.

Canja de galinha fica mesmo muito melhor com uma folha de hortelã.

14/11/2013

Quarenta e cinco milisegundos

Os automóveis andam-me a fazer a cabeça em água.

No mês passado raspei o carro do vizinho. Na alegria de chegar a casa esqueci-me que o meu veículo, ainda que fantástico, não vira o volante sozinho nem nos contornos bem conhecidos da garagem onde mora.

Bem, escrevi um post muito ajeitadinho sobre o que ocorreu, mas não no detalhe que agora venho acrescentar. Na verdade ficou impresso no carro um baixo relevo que progride longitudinalmente, num esmorecer para a direita de quem olha de frente, uma composição artística que só pode ser obra do design, ou então desígnio, que é parecido, pois é, e é do destino que ele é, a ornamentar-me a traseira direita do meio de transporte que privilegio, e que me valeu um orçamento composto por muitos algarismos. Deixemos isso, fiquemos por aqui, se o seguro não cobre extravagâncias, eu também não. E sempre ficou um carro único, obra assinada.

E o vizinho? Se há quem pense que calei o meu desvio da rota curvilínea e nada contei, desengane-se, que eu gosto de deitar a cabeça na almofada e dormir que nem uma pedra ou como um anjo ou ainda como um bebé, não sou esquisita.

O vizinho viu-me bater-lhe à porta, viu o esmorecimento que vem aí de dois parágrafos atrás, agora estampado na minha face corada, boa noite, espero não incomodar, mas só até eu lhe dizer o que foi, raspei-lhe o carro, desculpe lá, ó vizinho.

Preenchidos os papeis, trocados os contactos (que este era vizinho desconhecido), perdoados os males que nos vieram ao mundo naquele dia, a coisa seguiu para as companhias de seguros respectivas.

Há dois dias abri um intervalo na minha hora de almoço para visitar a secção de finanças de um bairro perto do trabalho. Não porque as minhas horas de almoço sejam tão más que eu, vai disto, nas finanças é que é, sempre se ouve o tilim do chamar das senhas, há movimento, não, as minhas horas de almoço não são más mas há coisas que tem de ser e a visita às finanças é uma realidade que meti na minha segunda feira.

Após o tilim que chamou o meu número e que deu em insucesso financeiro, é que não atingi o objectivo da minha visita, o melhor é voltar numa sexta feira que à segunda isto não funciona, de regresso ao meu veículo já largamente referido neste post, não é que, ao caminhar ao longo dos outros estacionados vejo qualquer coisa pelo canto do olho, qualquer coisa que me chama, que reconheço de outras paragens?! O veículo que ficou como B na folha amigável que tinha preenchido, eu mais o vizinho, estava ali, coitadinho, a ostentar ainda a ferida que eu lhe postei.

Isto consolou-me, claro, afinal o vizinho também gostou do design do destino, ou desígnio, para quem não gostar de estrangeirismos, e assim já somos dois.

Sorri e nisto tocou-me o telemóvel.

- Está? Sim? Minha senhora, não é para vender nada, não, não, por favor, juro, é de uma agência de (não sei quê) de estatísticas de estudos de mercado e a sua resposta é muito importante e preciso só de lhe fazer três perguntas, por favor, posso? Tomo-lhe apenas quarenta e cinco milisegundos, nem mais um.

- Pode, vá lá - eu ainda sob o efeito do consolo que senti e que mencionei acima, e então esquecida de tirar o sorriso da cara.

- Tem telefone fixo em casa?

- Tenho.

- Qual a operadora?

- Zon.

- Que idade tem?

- Eu? Quer saber a minha idade? Lembra-se dos seus quarenta e cinco milisegundos? Em anos é a minha idade, mas pareço muito mais nova.

E pareço, mesmo.

(Este post foge pouco à realidade dos factos, apesar de parecer inverosímil. Foge apenas no momento do telefonema que não foi no dia das finanças e sim mais tarde, mas o post estava a ficar demasiado comprido. Valente quem não fugiu e leu até aqui, que isto ficou bom de se ler.)

12/11/2013

Engenheira electromagnética

Levo a vida a sério e gosto que me levem a sério.

Não gosto que me toquem à campaínha para me informarem dos novos produtos das operadoras de comunicações, é assumirem que eu ando distraída e não sei que tarifários tenho em casa, nem quantos canais de televisão me enchem as possibilidades, nem o que anda a oferecer o mercado, é presumirem-me aberta a tentativas persuasoro-invasoras, e assim invento, não sem estilo, a palavra composta perfeita para o fenómeno desta praga.

Hoje tocaram-me à campaínha pela manhã, apanharam-me com a torrada na boca e o café na mão, quem é, perguntei, com a cassette do não quero obrigada, preparada. Mas era o homem da companhia das águas para fazer a leitura do meu contador, homem de trabalho, não está com conversas, entra, escreve o número e sai, bom dia. Leva-me a sério, este homem, toma o registo dos algarismos alinhados pelos roletes engrenados do aparelho e eu aprecio isto. O dia começou bem.

Não gosto que no encetar do conhecimento profissional com uma mulher, ela se avance para os dois beijinhos que não são para aqui, não senhora. Apesar de a iniciativa ter o seu quê de simpático, não é de levar a sério, é de perceber que esta mulher me assume profissional de trazer por casa, categoria na qual ela se declara inserir. Se for homem o interlocutor que se cruza no meu caminho de trabalho e se quer por aos beijos, registo-lhe no cadastro a mesma conclusão. Senhores, trabalho é trabalho, há que reter. Mas, convenhamos, é mais no caso mulher-e-não-homem-que-conheço-profissionalmente que o evento se verifica.

Hoje conheci uma mulher nas circunstâncias expostas acima, que me estendeu a mão. E com firmeza, ainda por cima. É de respeito, esta mulher. A conversa sintonizou-se logo na frequência certa e ninguém deitou palavras fora, ninguém sujou o assunto, que é sério, com trivialidades dispensáveis. E vão duas. O dia continuou bem.

Agora mesmo em que termino este escrever, oiço um alarme de automóvel tinir ritmado, desafinado, lá em baixo, nesta rua que haveria de ser pacata se eu fosse a engenheira electromagnética que a minha filha um dia perguntou se sou. Mas não, a minha engenharia fica-se para já pela opção de não ter alarme no carro, facto que me garante, ao ouvir este apito insistente, que o veículo em apuros não é o meu.

E o dia acaba bem.

11/11/2013

Outono


Castelo de Doorwerth, Países Baixos

Não foi neste outono, foi noutro. E estava frio.

Caminhávamos no tapete de folhas caídas. Falavas da tua trilogia que eu não entendo, aquela dos senhores e dos anéis. Saía fumo branco da tua boca a acompanhar a história, a torná-la mais autêntica, reparaste? Contavas que o velho tinha cento e onze anos e fez festa de aniversário. Disso gostei. Continuaste, que a história é longa e o caminho das folhas também.

Não sei quanto tempo andámos assim, o teu narrar interrompido pelas minhas perguntas, que escasseiam à medida do teu progresso. O meu nariz estava muito frio, lembro-me, e isso tornava as minhas palavras pesadas, calei-as. Tu continuaste.

A tua história de homens pequenos e homens maus, escuridão, coragem, medo e perseguição, ilustrava o mote que move os povos e produz as guerras, o poder.

Eu disse-te, mas tu já sabias, que nunca entenderei a guerra, que não entendo a sede de poder. Tentaste explicar-me a lógica, o inevitável, as forças instaladas e eu, então, não te pude ouvir mais.

À nossa frente estava o castelo e o cenário acordou-me dos porquês. Estaquei o passo, tirei a máquina do bolso, as mãos entorpecidas pelo frio, fotografei. Enquanto a devolvo ao meu casaco grosso, penso que talvez tenha sido o poder a fazer nascer isto. E eu, que o não entendo, que o rejeito, acabara de lhe fotografar um feito.

Entrámos na cafetaria instalada para os visitantes. A lareira da sala estava acesa e cheirava a café. Ouvia-se Mahler em fundo. Nas paredes, obras de autores deste tempo, coloridas, destoam da tua história e desta sala de pedra, velha, que as patenta sem as entender. Dei uma volta a cumprimentá-las - não se passa por uma obra sem a cumprimentar - enquanto encomendavas o café.

Sentámo-nos perto da janela, para que eu não perca o outono de vista. Porque me encanta assim?

Com o café quente na mesa e o nariz descongelado, anuí, enfim, a ver o filme contigo. Só porque me contaste a história naquele outono.

Mas isso eu não te disse. O café está bom, tu gostas da tua trilogia, as paredes ostentam obras das quais nada sabem e eu talvez um dia entenda isto.

09/11/2013

Resposta certa

Compro, na internet, os bilhetes para a ópera. Recebo, por email, um documento para imprimir e comprovar o pagamento. Bem recheado de informação sobre o evento, este documento que incorpora quatro folhas de papel, inclui os lugares onde nos vamos sentar e tudo e tudo, maravilha. Só falta dizer que a estação de metro mais próxima é a Baixa-Chiado.

No entanto, não obstante a validade das tecnologias de facilitamento das nossas atarefadas vidas, comprovada por tantas instâncias em tantas situações, há que ir com antecedência generosa para a fila da bilheteira, exibir as quatro folhas impressas e recolher os bilhetes verdadeiros, autênticos, impressos como deve ser, em tiras esverdeadas com picotados que as ligam umas às outras, quais crianças da UNICEF em roda de mãos dadas, que custaram dinheiro a alguém, e que confirmam o que esta família de papeis que levo na mão, já registam.

Ora o que temos, então, aqui? Um, incapacidade da minha parte para entender o processo instaurado para a compra complicada de bilhetes para a ópera e evitar esta indignação, dois, incapacidade destes senhores de cortar a ligação com o passado e abraçar sem medo as novas formas de fazer compras de bilhetes para a ópera de que gostamos tanto, três, any other business, direis vós.

É que isto, vendo bem as coisas, lembra-me a minha querida avó.

Ela sentava-se junto ao telefone, que era fixo, só havia dos fixos, não fosse alguém ligar, não quer que esperem por ela, as pernas já perderam o vigor de outrora e o corredor lá de casa era comprido.

Isto lembra-me que, em dias felizes, ela atendia a meio do primeiro trimmmm levantando o auscultador do aparelho estacionado na pequena mesa antiga, está?, e falava. E ouvia. E falava. E alguém lhe fazia o dia.

E isto lembra-me que, na meta final do telefonema, a minha avó ia dizendo adeus, adeus, querida, adeus, enquanto baixava gradualmente a intensidade da sua voz morna e se inclinava muito, devagar, acompanhando o auscultador, adeus, filha, adeus, no trajecto descendente, o ouvido ainda colado ao plástico redondo perfurado, adeus, adeus, até chegar ao fim do percurso. Clique.

O auscultador havia premido com firmeza as duas patilhas pretas que, de novo enterradas no chassis do telefone, cortaram a ligação.

Se isto da compra dos bilhetes para a ópera não me lembrasse a minha querida avó no adiar do corte da ligação, no permitir-lhe, à ligação, a pertença ao passado, no deixá-la, à mesma ligação, escorregar para fora do seu presente que, ela sabia, não tardaria a findar, eu diria que a resposta certa é a número um, acima.

Mas como, vendo bem, isto me lembra a minha querida avó, sei que a resposta certa é a número dois.

05/11/2013

Estacionar em espinha

Deito-me tarde quase sempre.

Por causa do fervor de querer esticar o dia para as horas em que já não pertenço senão a mim e o balcão dos meus expedientes já fechou.

Fecho também os olhos e a tontura do sono vem-me abrandar o fervor, num deleite que abraço.

E isto é no momento em que entra na rua o camião do lixo com o estardalhaço habitual, a luz laranja a dançar na minha janela, mesmo assim, sem ver, conheço-lhe a polka.

É camião vigoroso, este da nova frota. Tem flores verdes e tudo, pintadas na sua lateral. São bonitas.

Mas naquelas entranhas mecânicas encaixa o motor que não é daqui, senhores engenheiros. O seu rugir ressona com a caixa, estão a ver? A ouvir estou eu.

Com a caixa, esta, que é a estreiteza dada à rua pelos prédios altos, frente a frente. E a janela, bolas. A janela põe-se louca, transtornada, vibram-lhe os vidros desesperados, chateados com o som que não cabe, chega-te para lá, havia a rua de ser mais larga, e o vizinho do quarto andar podia estacionar em espinha as suas carrinhas Mercedes.

Um dia, se o camião do lixo me partir os vidros da janela enquanto estou a adormecer, ninguém vai acreditar em mim.

02/11/2013

Estaladiças

Conduzo o meu carro pela avenida dos mares, ou o que é, ali na zona da expo, junto ao rio Tejo e quase a chegar à ponte Vasco da Gama, janela do carro aberta, que o outono está lindo e é a minha estação preferida, quando me apercebo de que há algo na rua que me importuna a paz, era isto ontem pela hora do almoço.
O que é, o que é, raios parta, que dia tão lindo e que coisa esta, a minha janela quero-a aberta, em comunhão com o outono, o outono e eu.

Volto a cabeça à direita e vejo um homem envergando um colete verde fluorescente. Vejo um tubo de diâmetro de respeito, de plástico preto, que numa ponta sopra ar e na outra está agarrado a um motor que este homem de colete verde segura como se de um bebé se tratasse. O motor chora baba e ranho, alto e bom som, ou péssimo som, é isto que me irrita a tranquilidade, deve ter fome ou tem a fralda suja.

Mas então paro o carro e concentro-me na pesquisa da pertinência do trabalho deste homem, a minha curiosidade tem certas necessidades. O serviço consiste, observo, em soprar com a barulheira infernal do estupor deste motor que se passeia ao colo, mais valia mil bebés aos gritos, em soprar, repito, folhas outonais, estaladiças, de um castanho torrado, caídas no passeio das vivendas geminadas, a conferir-lhe cor, a contar às vivendas que sim, que o outono já chegou, alegremos os nossos corações, mas não. As folhas estão a ser sopradas para o alcatrão da estrada, todas.

A mim a cena soprou-me para fora dali, que isto é coisas que eu não gosto de ver. Nem de ouvir.

Isto e os saltos altos da vizinha do andar de cima.

01/11/2013

Andorinhas

Há pouco tive um encontro casual tão bonito.

A Agustina Bessa-Luís esteve no ecrã da minha televisão e também deve ter estado nos ecrãs de muitas outras por esse Portugal fora, a ideia é essa, adiante, antes que eu escorregue no meu entusiasmo, ai que se me verte dos dedos, derrama-se pelas teclas do computador, ainda bem que já não se escreve à mão, assim vamos mais depressa e, como dizia, o encontro casual que bonito foi.

Diz a Agustina que lia muito. Que na adolescência preferia ficar a ler em vez de ir a festas com pessoas da sua idade.

E eu, de repente, tocada cá dentro, fundo, Agustina eu também, voei até aos momentos longínquos que vestiram de paz a alma de perguntadora que comigo nasceu.

E aterrei nos fins de tarde das férias de verão da minha adolescência. Sentada à beira da piscina com toda a colecção de literatura que podia encontrar na estante da casa dos meus avós, a nossa casa de férias, sorvia, gulosa, páginas e páginas enquanto havia luz cá fora, na companhia das andorinhas do entardecer que rasavam a superfície da água e a debicavam para matar a sede.

A sede e mais uma porção de microrganismos, devido ao tratamento químico que a referida água oferecia, eram andorinhas com saúde, isso via-se na precisão do voo rasante.

Ler, como a Agustina lia, como eu lia, como o meu querido leitor ou a minha querida leitora agora me lê, que isto tem de ser justo, ler é ouvir um silêncio.

Escrever, como ela escreve, como eu estou agora mesmo a fazer, que não fico de fora da metáfora, cada um trincha o frango com a ferramenta que tem, escrever é falar em silêncio.

Falar para alguém que, depois, vem ouvir.

Não importa se vem pouco depois ou muito depois.

A palavra escrita nasce e instala-se fora da corrente do tempo, onde a morte não a pode encontrar.

Deve ser por isso que a paz mora aí.

30/10/2013

Pensar

Chamava-se Song Yonglun, o meu amigo chinês. Era professor catedrático na Universidade Tecnológica do Sul da China e veio a Lisboa por alguns meses fazer um trabalho de investigação. Por acasos felizes da vida, calhou ficarmos, ele e eu, na mesma sala.

Tinha as pálpebras superiores a cair suavemente e quase sem curvatura por cima dos olhos escuros, um pouco tristes.

Se conversava no corredor com alguém, juntava os pés e as mãos, braços caídos mas não abandonados, baixava ligeiramente a cabeça enquanto ouvia e depois ficava a pensar um pouco antes de falar.

Nessa altura, para falar, levantava a cabeça olhando de frente o seu interlocutor e mantendo a postura corporal. Ele era humildade, inteligência e sabedoria. Paz e tranquilidade.

Eu, que saltitava de crescer em crescer ainda na casa dos vinte e cheia de inseguranças, dúvidas e certezas, mistura explosiva, parava o relógio do tempo para o ouvir.

De cada vez que saía da sala onde trabalhávamos, ele fazia-o a caminhar para trás, para que não me virasse as costas. Na minha existência imberbe de então, se da primeira vez achei aquilo esquisito, logo me enchi de respeito.

Se nos via, a mim e aos outros colegas do corredor, a rir com as diferenças que ele trazia, baixava os olhos e sorria na espera sem impaciência. Nós haveríamos de crescer.

Vivia no campus universitário da sua universidade, numa das melhores casas atribuídas aos professores da cátedra. Tinha cerca de vinte metros quadrados e partilhava-a com a família, ao todo quatro pessoas. Nunca tinha tido um domingo livre para ir ao parque com a sua única filha, de cinco anos, e assim cumprir o sonho da sua mulher. Trabalhava sete dias por semana até muito tarde.

Parecia saber sempre como reagir aos conflitos que outros criavam.

Um dia perguntei-lhe para que era eu calhada, o que achava ele? Ouviu a minha pergunta, foi pensar. No dia seguinte deu-me a resposta: editora de livros, eu devia ter uma editora de livros.

O meu amigo Song Yonglun voltou para a China em agosto de mil novecentos e noventa e cinco.

Eu, animada da sabedoria que dele tomei, com profundidades essenciais sobre a existência humana e a dar os primeiros passos na arrumação de prioridades, escrevia-lhe. Por vezes enviava-lhe um facsimile, por ser tão imediata a comunicação. Ele nunca respondia.

E eu insistia, insistia, deve ser da distância, das linhas, insistia.

Um dia respondeu. Pediu-me para não comunicar com ele porque lhe causava problemas na Universidade, não tinha autorização para receber as minhas missivas. Não era suposto ele ter feito amizades em Lisboa.

Nunca mais lhe escrevi e nunca mais o vi.

Não sei se agora vive menos preso nas amarras da sua cultura ou se isso não lhe importa porque a sua alma é livre.

O que sei que sei é que ele continua a dar-se tempo para pensar.

29/10/2013

Barriga do peixe

Há muito tempo que não te escrevo.

Ainda tenho as palavras sujas e custa-me mandar-tas assim.

Aqui os dias já se estão a vestir de cinzento e as lágrimas do céu começaram a cair e molharam tudo. Mas eu não me importo.

A roupa lavada que estendo para secar enquanto penso em ti, não seca, mas descobri que se a lavar a sessenta graus fica com menos mau cheiro, é o que agora faço.

Este mau cheiro, este, que se veio colar às minhas palavras maculadas, desculpa.

O correr dos dias aqui é constante, a monotonia só a quebro porque oiço música diferente a cada hora. De resto é o que sabes, não te conto nada de novo, não lavei as palavras.

É o trabalho, a ilusão de prosperidade, a hora da saída, o anoitecer, o supermercado quase sempre, as limpezas domésticas às vezes.

Esforço-me, tu sabes disso. O detergente da máquina da loiça acabou, mas na loja só havia pastilhas de lavagem completas, daquelas que eu não uso, cinco em um ou coisa assim. Mas trouxe-as, são boas, modificam-me os dias e têm três cores.

Vês como as minhas palavras não prestam?

Encontrei uma maçã velha no fundo da cesta da fruta e descasquei-a a pensar em ti, porque penso em ti o tempo todo, estava tão seca, deitei-a fora.

E enquanto estendo estas palavras moles, pegajosas, mofentas, e as estico, as tento endireitar para ti, ordenar, arrumar em caixas com laços azuis e lilases, oiço uma voz chorosa que vem de outro apartamento. É a vizinha que não sai à rua há meses, que vê televisão e que ouve as histórias de amor com mentiras. Mas amor com mentiras não é amor.

O ar está a arrefecer e em breve vou ter frio de noite por causa do vazio que deixaste ficar. É por isso que calço as meias grossas que te fazem rir, são coloridas ao menos.

Já chegou a foto que me mandaste pelo correio. Colo-a aqui no fim das minhas palavras ímpias que não as pude sagrar. Gosto do azul que ostenta e da agonia que me firma na alma porque me mostra quão longe estás, me autoriza a dor e me rega as lágrimas. Aqui os homens ainda usam calças.

Queria enviar-te chá de tomilho, a erva que meto na barriga do peixe antes de ir ao forno, mas tu não gostas de chá.

Daqui a dias, quando chegares, mostro-te como o meu sorriso voltou.

28/10/2013

O elefante

Tinha quatro anos de idade e era o dia em que a minha mãe me ia levar ao jardim zoológico.

Seguíamos no seu Fiat 127 cuja matrícula ainda sei e que muito mais tarde foi roubado do parque de estacionamento de Algés. Nunca mais voltou.

Cá vamos, então, no Fiat, Campo Grande fora. O primeiro destino é a casa da amiga da minha mãe cujo nome esqueci (memorizar matrículas é que eu faço bem) e que tem uma filha da minha idade.

Ora neste feliz dia vamos todas, as quatro, visitar o jardim dos animais, local mágico, aonde eu estalo de vontade de ir, mas que hoje me amedronta porque, mãe, disseste que vamos andar no elefante, disseste? E se ele não quer?

- Quer, filha. Mas antes de chegarmos a casa da Ana (acabo de a baptizar, Ana serve muito bem), tira a pastilha elástica da boca, para não ires a mascar, que é muito feio.

Obediente, que a minha mãe é que manda, tiro a pastilha da boca e, como não vi, dentro do carro, depósito apropriado, fica a pastilha encolhida na minha mão esquerda, fechada, só até sair e encontrar um caixote do lixo. E entretanto pensava no elefante, ele é tão grande, será que vou cair?

Chegamos à porta da Ana, mas não houve tempo de sair e procurar o desejado caixote, a pastilha fica aqui mais um bocado, muito sossegadinha na minha mão e já deve ter adormecido, porque me parece que está espalmada.

Entra a Ana no carro e então, efusivamente, olá Susana, que crescida, dá cá um beijinho, e tal, aquelas coisas que me enervam, principalmente com isto na mão, se tivesse demorado mais um bocadinho, eu tinha saído e procurado o lixo, e o medo do elefante, crescida eu?

A outra miúda instalou-se a meu lado, também não é nada crescida, tem é cá uns olhos curiosos, espero que não saiba do que tenho escondido na mão. Olá, disse-lhe eu.

Dali ao jardim dos elefantes foi um salto e, finalmente, estou fora do carro.

Entramos nos portões de Sete Rios e avisto o desejado cilindro esverdeado-sujo, feito em rede metálica, salvo erro, a olhar para mim. Detenho-me junto dele e disfarçadamente abro a mão mesmo por cima do círculo aberto ao céu, que alívio vai ser, deixar o rejeitado pedaço de goma mascada cair lá para dentro.

Mas ela não cai. Que coisa, a pastilha espreguiçou-se e agora não sai, está agarrada, colada à minha mão, acinzentada e suja, ai, como se faz para deitar isto fora, tenho que raspar, mas se calhar cola-se à outra mão, é melhor não mexer.

- Anda lá Susana, anda!

Fecho a mão e corro para as apanhar não vá verem esta porcaria, que vergonha. Não posso dizer nada, não quero deixar a minha mãe ficar mal perante a amiga e a outra petiza que é muito curiosa, já sabemos que pastilhas é feio. Agarro com a minha mão direita a mão da minha mãe, porto seguro, talvez daqui ela me consiga ouvir o segredo se eu lho contar baixinho, mas não pode ser, a miúda não se afasta, vai ouvir tudo.

- Vamos andar de elefante? - pergunta ela, ansiosa.

Resposta positiva, entusiasmada, das mães em uníssono. Vem a miúda a correr pôr-se ao meu lado e tenta agarrar na minha mão esquerda para sermos duas crianças felizes a saltitar em vez de uma criança feliz a saltitar e uma criança infeliz agarrada à mãe, com um problema na mão e medo do elefante.

- Esta mão não se pode abrir - digo eu.
- Ai não? Porquê?
- Porque tem um segredo.

Ah, um segredo na mão. A outra menina parou de saltitar e caminha agora ao meu lado, a curiosidade ainda lá está, a avaliar pelos olhares de soslaio que me deita à mão, mas a admiração é mais evidente. Um segredo na mão!

- Ó mãe, eu também sou crescida, não sou? - oiço-a dizer, enquanto me concentro a pensar que desculpa arranjo para não subir ao elefante com uma mão a menos para me segurar.
- Claro que sim, querida.
- E as crescidas podem ter segredos, não podem?
- Hum? Podem...

Depois, olhos no chão, voz fininha, desanimada, confessa:

- É que eu também tenho um segredo... tenho medo de andar no elefante.

23/10/2013

Fada de espuma

Lembro-me muito bem do teu sótão.

Palco das histórias mágicas que me contavas, com fadas e princesas, o teu sótão foi o ninho onde nasceram os meus sonhos.

O soalho era feito de tábuas muito compridas entre as quais desapareciam os alfinetes que te caíam dos dedos quando experimentavas em mim os vestidos de verão que se faziam com as tuas mãos de anjo. Está quieta, dizias.

Eu queria os vestidos compridos até aos pés e tu dizias que não, isso não. Mas, depois da prova, eu ia ao cesto dos restos de tecido e escolhia um bem grande. Enrolava-o à cintura e pedia-te os alfinetes, prende aqui, prendes? Prendias. E deixavas-me ser a princesa das tuas histórias.

Lembro-me de te sentares à janela, aberta para os telhados de Lisboa. Recortava com a tesoura, devagar e desajeitadamente, os restos dos panos que sobravam das tuas costuras, para eu fazer as minhas. E, ao mesmo tempo, observava os pássaros que esvoaçavam perto de nós.

- Se eu cair da janela e escorregar no telhado, tu vais buscar-me?
- Não, querida, os pássaros apanham-te e trazem-te para casa.

E cantavas outra vez aquela canção que eu te pedia, a da fada de espuma, vá lá, só mais uma.


Muito tempo mais tarde, no dia em que morreste, perguntaste-me, admirada, porque gosto tanto de ti.

Não sabias que os teus panos e os teus alfinetes, as tuas histórias e cantigas, teceram para sempre o manto de protecção que ficou a pairar sobre mim?

Lembro-me muito bem do teu sótão, avó.

Setenta e sete palavras

Hoje foi um dia bom.

A minha irmã Catarina escreveu um texto com setenta e sete palavras e foi lida hoje na rádio pela escritora que lança o desafio. Mais nada!

21/10/2013

Roménia

O voo da TAP vinha a abarrotar, é o overbooking, disseram.

A confusão, amiga do overbooking, também veio. A bagagem de mão não cabe nas bagageiras do costume, as hospedeiras esforçam-se por enfiar sacos e mochilas nos (lá vamos nós outra vez, que palavra linda) interstícios entre os bancos e tal, e a coisa, após discussão, olhe aqui, veja ali, gente nervosa, queixas e suspiros, lá vai. Elas, as hospedeiras, mantêm o seu sorriso maquilhado sem perturbação, que é factor admirável. E resolvem tudo.

Já eu estou sentada no meu lugar, a encetar a leitura de viagem, quando sou abordada por uma passageira que, vítima do overbooking, calhou num lugar ao meu lado mas longe do seu companheiro. Pergunta-me se viajo sozinha. Sim, viajo sozinha. Então não se importa de trocar, é que nós queremos estar juntos e ele, apontou para o companheiro que vinha a evoluir pelo corredor, a custo, espremido entre malas que ainda não tinham entrado nas bagageiras já cheias e braços levantados a empurrá-las, a empurrá-las, lá vinha ele, a sorrir solicitante, para complementar o pedido, e ele, dizia, ele ficou num lugar la à frente.

Acedi, claro, não perco uma oportunidade de ajudar a tornar o mundo (meu ou dos outros, o mundo é o mesmo) um bocadinho melhor. Fecho o meu livro, pego nas minhas coisas e levanto-me.

Mas antes de iniciar caminhada contra a corrente e dirigir-me ao meu novo lugar, lá à frente, mesmo na fila um, fui obrigada a ir ao fim do avião até todos estarem instalados, e só depois, finalmente, percorrer o seu comprimento até me poder sentar.

Sento-me. Ao meu lado, dois compinchas da música conversam.

Passa a oferta de revistas, é a Visão, é a Sábado, aceito a primeira, sempre compensa a falta de serviço de refeição que acabam de anunciar, agora na TAP é assim, há gente a menos e por isso não há serviço, a malta fica com fome se não se previne. Eu não me tinha prevenido. Aceitei a revista, pronto, para ler em vez de jantar.

Os meus vizinhos de assento conversaram toda a viagem, toda, sem uma pausa. Admirei-lhes a abundância de tema, estive a um passo de os cumprimentar por isso. Mas não o fiz.

Em vez disso apurei os ouvidos para lhes roubar a ciência que trocavam, e mesmo na baixa pressão da cabine, em que o som se propaga com mais custo, apanhei esta tirada, que para mim é novidade.

Na Roménia uma música tem que ter no máximo três minutos e dez, três minutos e quinze, máximo, e nos primeiros trinta segundos tem de rebentar, senão já não dá. Mercado totalmente permeável à música dos meus companheiros, segundo eles. Bom presságio para o futuro que traçavam.

Faltou neste voo ordem na arrumação das malas, faltou um tripulante e faltou o serviço de refeição e de vendas a bordo (serviço totalmente inútil, podia faltar sempre), mas a estes dois amigos não faltou conversa. Nem conversa, nem entusiasmo que é coisa que nem sempre se regista assim, com esta facilidade e só porque mudei de lugar.

A propósito, isto do overbooking faz-me pensar. Onde andará a crise?

Será que foi meter o nariz na Roménia e ditar-lhes o formato temporal das músicas?

18/10/2013

Tampões de esponja cor-de-laranja

Uma das t-shirts de uma das minhas filhas exibe a inscrição "sweetness of nature" em letras brancas abertas em rectângulos pretos num fundo, de novo, branco. E foi hoje o dia em que os meus olhos pousaram nela, nesta hora de quietude no lar em que apenas resto eu de vigília. A t-shirt está pendurada nas costas de uma cadeira à espera de apanhar boleia para a gaveta a que pertence.

Eu ignorava até este momento que a minha filha informa o mundo, que com ela tem o privilégio de se cruzar, de uma verdade tão cristalina e tão pura.

Em primeiro lugar, não quero escrever um post comprido, para não fazer diminuir ainda mais o número de visitas a este blogue outonal.

Em primeiro lugar também (que vem apenas um nano segundo depois do parágrafo anterior e não um segundo inteiro), sinto-me uma má mãe por só agora ter visto o que está escrito numa camisola da minha doce filha, quando aquela já está a entrar na idade puída das camisolas.

Em segundo lugar, sinto-me uma má mãe porque nem sequer sei a qual das doçuras da natureza que eu pus no mundo esta peça de roupa idosa pertence.

Em terceiro lugar e com vista a manter o post curto e apetitoso de ler, se é que ainda vou a tempo, acabo de perceber porque dizem as minhas filhas a propósito de uma outra mãe que essa é que é uma mulher a sério. É que vai aos saldos, é que faz compras com as filhas (dela), é que sabe escolher.

Em quarto lugar e último (mantenho o intento da curteza do texto), há que esclarecer então, justiça seja feita, que a tal outra mãe, que já sabemos que é uma mulher a sério, não se importa com a música de levar-com-tábuas-na-cabeça que as lojas de roupa para jovens insistem em passar em altos berros. E por isso deve conhecer as mensagens das t-shirts das filhas.

Este parágrafo é extra, que depois do último não deve vir mais nada, mas há que fechar a história: eu, mulher a sério mas mãe incompleta, declaro que vou fazer uso dos tampões de esponja cor-de-laranja que me deram num voo de longo curso e vou acompanhar as minhas doçuras da natureza na próxima visita às lojas, vou vou. De tampões de esponja cor-de-laranja nos ouvidos e de sorriso na cara.

16/10/2013

Muita satisfação

Acabo de descobrir que chá de gengibre com hortelã fresca é quase tão bom como ficar na cama ao sábado de manhã a sorrir de olhos fechados, que não é dia de trabalho.

Por isso, agora é isto: chego a casa, tiro os sapatos e o casaco, ponho uma coisa de borracha nos pés que me assenta muito bem o andar, visto outro casaco, um que comprei há doze anos quando ainda era branco, numa loja de desporto, e antes de desatar a gritar às miúdas que arrumem os livros da escola, os ténis espalhados pelo chão, a manta do sofá que ganha vida própria quando elas estão em casa mas nunca foi uma, sempre a outra, antes disto tudo, deito água na chaleira nova e carrego no botão.

Enquanto oiço o apito rouco que a electricidade faz ao manobrar poderosamente a energia, enfiando-a dentro da molécula de dois hidrogénios com um oxigénio, enquanto isso, corto fatias finas de gengibre que trouxe do supermercado e penso: o gengibre é como eu. Feio por fora, bom por dentro.

Depois, quando a água atinge o ponto de mudança de estado e a chaleira sabichona da tecnologia faz saltar o botão que eu antes accionei, deito um pezinho ou dois de hortelã dentro da panela do chá (panela fica bem mas é bule, é bule), a água fervente por cima e deixo-me levar pelo aroma.

A seguir esqueço-me de gritar tudo o que declarei que grito às minhas filhas, preparo o jantar e bebo o chá de gengibre com hortelã como se não houvesse amanhã. Esta expressão corriqueira agrada-me bestialmente e por isso hoje a posto aqui com muita satisfação.

E agora que mudei o teor dos meus posts para receitas caseiras, vou tratar da pilha de roupa que está por passar. Como se não houvesse amanhã.

09/10/2013

Televisão com fibra

                                                             Armanda Passos

- Mas porquê? Porque gostas do quadro? - quis ele saber.

- Sei lá, gosto. Gosto muito. É a cor e os pés, grandes. Os vestidos também, claro. Gosto muito. - disse eu.

Mas não disse tudo, nunca digo. Um quadro e eu, em gostando um do outro, temos segredos.

E deste gosto porque aquela mulher sou eu.

Sou a camponesa livre que galga o terreno com uns pés grandes, consistentes, e que não tem medo.

Sou esta mulher que vai à terra deitar-lhe as sementes que traz na dobra do avental colorido e regressa a casa com a certeza da colheita.

Sou a mulher que sabe esperar pela primavera e que, enquanto o inverno corre, coze o pão e recolhe a lenha, para acender o fogo que nunca lhe falta e enche a casa, que é o seu lar, de aromas quentes, inesquecíveis.

Sou a que conhece a chuva que vai cair amanhã e o cantar do vento que ainda não parou.

Sou a que leva o cântaro e o enche na fonte de água cristalina e fresca, só para a ouvir. E pelo caminho conta a história da velha que não sabia ler nem escrever à criança que imagina levar pela mão.

Sou a que, com assobios desafinados, imita os pássaros e com eles fala.

Aquela mulher sou eu. Sou a da direita e também a da esquerda. Sou as duas, que a solidão não me conhece.

É que naquela terra, em que semeando dá em colhendo, não houve lembrança de criar padrões de beleza. E eu, em segredo, sem medo, podia ser feia.


- Sim, gosto muito. Da cor, dos pés grandes e dos vestidos - repito, enquanto oiço o cão do andar de cima ladrar porque o vendedor dos quatrocentos e oitenta e nove canais de televisão com fibra tocou a todas as campainhas do prédio.

02/10/2013

Pintado de fresco

Não vou contar isto em tom de queixa, prometo.

O trabalho hoje foi a rasgar pano, tinha de terminar o apanhado de um fenómeno que nos caiu na sopa para engolirmos quer gostemos ou não, lá na empresa. E foi mesmo a cem à hora e não sem hora, porque às dezoito e quinze havia a reunião na escola da outra filha.

Desta vez tenho de agradecer aos anjos o ter participado finalmente numa reunião de pais em que todos, mas todos, pais, mães e uma irmã, disseram coisas pertinentes, interessantes, interessados, e educadamente! Todos! E - cereja no topo - a mostrar o amor pelos educandos, coisa que nem sempre está patente.

Saí da reunião com a bexiga a reclamar a hora do alívio, aguenta aí só mais um bocadinho, está quase.

Ainda precisava de comprar o jantar e mais umas coisas imprescindíveis para sexta feira e como amanhã é dia de ginásio e ontem também foi, só sobrou hoje.

Estacionei à porta do supermercado às dezanove e cinquenta e voltei a entrar no carro com os sacos cheios (e a bexiga também, não esquecer) às vinte horas e catorze minutos. Sorri no escuro do habitáculo, satisfeita com a eficiência da operação.

Até casa eram só mais umas poucas centenas de metros, onde me esperavam as minhas filhas, uma delas a estalar de curiosidade para saber como foi a reunião, mãe?

Pressionei o botão do lado esquerdo do comando do portão da garagem (o botão do lado direito está lá, mas não tem serventia) e assim que o espaço na vertical permitiu passar o meu automóvel e mais um milimetrozinho para a margem, lancei-me rampa abaixo entusiasmada com a chegada a casa. Mas na curva, bolas, na curva do Seat que está lá a coleccionar pó às camadas, ouvi um som de rrrrrrrrrr que não me deixou nem o tal milímetro de margem para dúvidas.

Boa. Raspei o carro do vizinho do oitavo andar.

Estacionei no meu lugar, irritada com o aperto da garagem, a posição dos outros carros, a dos planetas e também com a natureza, que me encheu a bexiga desta maneira, logo na altura em que mais precisava de não raspar carro nenhum. Escusado será referir que a satisfação que trazia da operação-supermercado-fulminante sumiu-se por causa do Seat da curva da garagem.

Saí do carro, do meu, e dei a volta a ver o estrago. Nada, com o dedo retirei as vinte e três camadas de pó sobrepostas numa linha de cor indefinida que roubei ao Seat. Voltei a ver a cor preta do meu carro, em todo o seu esplendor.

Carregada com os sacos para não ter de voltar atrás, já se sabe as urgências que trazia, dirigi-me à curva onde está o Seat, que fica a caminho do elevador, e observei a zona da linha de pó que lhe fiz o favor de limpar. Estava lá. E estava também o risco preto, pintado de fresco por mim.

Mas eis que foco melhor a visão, pouso os sacos pesados, e verifico que a minha marca tem companhia.

Havia lá outras, assinaturas de todas as cores, branco, vermelho e uma de um azul pálido que conheço vagamente da mesma garagem.

De volta à sensação de não estar só no mundo, e já em casa, escrevi ao vizinho do oitavo andar a dar-lhe conta de que também eu lhe assinei o carro. De preto, vizinho, acho que ficou bonito.

De certeza que ele vai ficar contente. Eu já estou.

É que, entretanto, passei pela casa-de-banho.

Via rápida

Todas as manhãs te levava à escola, de carro. Ias no banco redutor, adaptado ao teu tamanho de criança, no assento de trás. Habitualmente viajávamos em silêncio, a hora matinal não se presta a muita conversa.

A seguir à rotunda da estação de serviço, entrávamos no acesso que mete para a via rápida, à nossa esquerda. Rápida mas só de nome, àquela hora. O tráfego era denso. Lento, compacto, seguia impaciente. A manobra exigia-me uma boa dose de perícia ou a concessão de um dos outros condutores, a deixar-nos entrar. Acto contínuo, a minha mão direita ergue-se em agradecimento.

Num dia de tráfego mais fluido, a espaços, não levantei a mão ao entrar na via rápida.

- Não agradeces, mãe?
- Ninguém me deixou passar, filha, fui eu que entrei.
- Mas é melhor agradeceres. Se calhar a pessoa que vem atrás de nós queria deixar-te entrar.


Hoje o banco de trás do meu carro vai vazio, tu cresceste. Andas noutra escola e já vais sozinha.

Talvez agora te risses, se me pudesses ver. Todas as manhãs, ao entrar na via rápida, a minha mão aberta ergue-se, incondicionalmente.

Ficou-lhe o teu pedido na memória.

E naquele ponto da estrada, para sempre ligado a ti, abre-se-me este sorriso que vem da tua infância.

27/09/2013

Sal marinho

Depois do trabalho, houve reunião de pais na escola da Mafalda. Chego atrasada porque a chuva resolveu aparecer por cá e como é seu costume, fez multiplicar automóveis. Estacionei onde calhou e calhou ser longe.

Saio da reunião antes do fim, boa tarde, desculpe, porque já tinha o jantar combinado com a Catarina. Não a vejo há muitos anos e por isso nem estremeci com a sobreposição de agenda.

Meto por uma segunda circular que hoje circula, apesar da chuva. Seguiu-se a autoestrada para Cascais que continuou a fluidez de tráfego que eu já trazia, incrédula, da circular. Ao local combinado chego uns minutos antes da hora.

O bar da praia está quase deserto. A esplanada tem os guarda-sois fechados e atados, não vá o vento enrolar-se neles. De dentro, soa acolhedora a habitual música jazz.

Sento-me a uma mesa na esplanada a gozar a intempérie do jovem outono. Como é maravilhoso este tempo agreste!

O vento trata de me untar a cara com água salgada que traz roubada às ondas. Elas, loucas de raiva, saltam galgando a falésia à minha frente. Fico a olhá-las do meu posto de vigia, com uma tranquilidade que não trouxe de Lisboa.

Não sei se é do jazz que vem de dentro do bar, se das memórias deste lugar eternamente meu, se do encontro iminente com a minha amiga que não vejo desde há três filhos atrás, se de me ter baldado ao final da reunião de pais no momento em que a revolta contra os males previstos para o ano lectivo está ao rubro, porque sim, porque eles já sabem, ai os nossos meninos, não sei do que é, mas sinto-me feliz.

O vento está morno, veste as quenturas do verão que ainda lhe não morreu na memória. O sal continua a beijar-me o rosto e vai pintando o meu cabelo de branco tímido.

As ondas ainda não se acalmaram e a Catarina está a chegar.

25/09/2013

Duty free

Não pertenço aqui. Trazes-me no teu carro e fazemos a viagem em silêncio. Por vezes trocamos umas palavras imbecis sobre as nuvens. Ou sobre as pastagens que se deitam ao nosso lado, na viagem, e são extensas. Tenho inveja das vacas, que nunca têm pressa e ficam sempre onde estão.

Torço as mãos debaixo da dobra do casaco, para não as veres. Deixo sair o suspiro que me está entalado no peito quando a atenção te prende à estrada.

Estacionas no piso que tem sempre água nas juntas das placas de cimento do chão, mesmo quando não esteve a chover. Caminhamos em direcção ao edifício, que é gigante. Entramos na porta dos traços desenhados por tubos de néon, um amarelo, um vermelho e um azul, a fazer figuras indecifráveis. O mármore polido do chão brilha num tom frio e nós, indiferentes, dirigimo-nos para o tapete rolante que hoje funciona.

O longo corredor vai desembocar no átrio enorme cheio de viajantes apressados, uns chegaram outros vão partir, como eu. As suas conversas chegam-me aos ouvidos em excertos que tento colar, muito depressa, a ver se um dia tenho uma história bonita para te contar.

Lá em cima, passo no controlo de raios X, tu ficaste para trás. Volto-me para te acenar o adeus que me pesa no braço, em todo o corpo. Sei que estou a sorrir para que tu me vejas sorrir. Tu também me acenas.

Volto-me outra vez, enfim, e recomeço a caminhar.

Sigo assente nas minhas pernas que se mexem como autómatos comandados não por mim. Estou entorpecida. Em exposição, desfila ao meu lado toda a colecção de duty free, os chocolates, os perfumes, os vinhos, os relógios, as malas, os preços exorbitantes, free de quê afinal, que coisa insípida. Todo este glamour que promete ilusões. Só porque me vou embora.

Entro na loja que tem um monte de livros à porta, como se fossem todos muito urgentes, a ver se me consolam. Leio os títulos, um a um, desenho com os olhos os nomes dos autores desconhecidos, faço-lhes promessas de os vir buscar, um dia, hoje não que estou dormente.

Depois fico tonta, farta, irritada, estou triste e ligo para casa. A voz da minha filha arranca-me instantaneamente ao torpor, que música mais linda.

Digo-lhe que o voo não tem atraso e que vá preparando o jantar.

22/09/2013

Seis em cada mil


Este é o interior de uma das muitas carruagens que transportaram judeus para o campo de concentração de Auschwitz, durante a segunda guerra mundial.

Encontrei-a assim, de porta aberta, sem uso, envergonhada do seu passado, que dá para sentir. Está no museu dos caminhos de ferro em Utreque, nos Países Baixos.

A voz no altifalante instalado no tecto da carruagem debitava algumas estatísticas dos horrores.

Agosto de 1942. A carruagem levava cinquenta judeus. Alguns morriam no trajecto que durava três dias e três noites. Mesmo assim, muitos chegavam vivos. Levariam talvez esperança em vez de bagagem.

Despejados como gado, sobreviveram ao campo de concentração à taxa de seis em cada mil. Seis. Em cada mil.

E nós, aqui, nesta praia à beira mar plantada, sol e vinho com fartura, cerveja e tremoços que bem escorregam, fado ao fundo para nos embalar a tristeza que nos impregna a alma lusa.

Que é muita a crise, muita. Estamos cheios dela. Cheios de crise, nós, de crise!

Qual crise?

20/09/2013

No museu

Hoje tenho de ir fazer o cartão, tem de ser.

Abro a gaveta da mesa de cabeceira. Onde estão as fotos tipo passe que tirei o ano passado? Tenho a certeza de que as meti aqui. Reviro os objectos, que tralha, jesus! Tanta esferográfica, como é possível? Conto-as, sete. Sete?! Meto-as para trás, agarro nas fotos e enfio-as no bolso das calças, daqui já não saem. Fecho a gaveta.

Depois, na cozinha, abro o correio que trouxe ontem para casa, vinha tão ataviada com os sacos de compras, o jantar que tinha de ser feito, que deixei o correio para hoje, são as contas para pagar. Ponho-as por ordem da data limite de pagamento e tento memorizar a primeira, para não falhar. Esforço-me por ser organizada, às vezes resulta.

E aqui estão mais, no cesto do correio, mas deve ser só uma ou duas, deixa ver. Seis. São seis. Admira-me isto. Como consegui juntar tanta esferográfica?

Quase pronta para sair de casa, finalmente, vejo que tenho de mudar de mala. Um problema que tento minimizar com as malas multicoloridas para darem bem com tudo, ou quase, uma pessoa tem de estar bem, mas caramba, perder tempo de manhã é tramado! Hoje tem de ser, troco de mala. E conto-as, agora tornou-se desafio, afinal há que olhar para as miudezas da vida quando se fareja uma coisa destas, não? A ver quantas são. Três. Três esferográficas na mala para hoje, duas ficaram na colorida, tão bonita, a minha preferida.

Saio de casa, desço as escadas, entro no carro, olho para o relógio que está três minutos adiantado, a velha inútil estratégia, porque já vou atrasada, podia ter deixado o correio para logo e as fotos, bolas, posso ir amanhã tratar do cartão. Ah, será que ainda é preciso levar fotos?!

No trajecto para o trabalho vou a pensar que fenómeno é este que se desenvolveu autonomamente, geração espontânea, mesmo nas minhas barbas, um manancial de esferográficas, metem-se em todo o lado.

Na verdade, dá muito jeito tê-las mesmo à mão quando é preciso acrescentar à lista de compras o detergente para a loiça, o vinho ou as batatas. Ou quando...

Ou quando o quê?...

Ah, pois, quando assino as mensagens da escola das crianças a confirmar que sim, que autorizo, que sim, que tomei conhecimento, é isso.

E mais?

E mais nada.

É que não uso esferográfica para mais nada.

Como gosto de estudar fenómenos que não interessam a ninguém mas que me estimulam os neurónios, porque há uma razão para tudo, ponho-me a pensar.

A pensar que a era da escrita electrónica está instalada e substitui as esferográficas, é o que é. Não servem, já ninguém as usa. Vão acabar nas prateleiras dos museus, ai vão vão. E depois, as criancinhas, olha, mãe, olha como a tua avó escrevia! Tão bonita, a esferográfica! Gostava tanto de ter uma!

Mas isso não é para já, que esta avó de que a criança fala ainda anda de fraldas. E os museus ainda não querem esferográficas.

Para já, tenho uma ideia melhor.

Vou mandá-las todas à Joana Vasconcelos. Para ela fazer um coração gigante, uma flor que abre e fecha, meter-lhes néon dentro, usá-las nos saltos dos sapatos, em peças de automóveis, aplicar-lhes asas, sei lá!

Sempre é uma forma de as ver mais cedo no museu.